... ou uma história prodigiosa num Domingo ensolarado.
Era o primeiro Domingo de 2021. Cedo. Praia do Bessa ensolarada. Resolvemos procurar um lugar sossegado, longe de qualquer aglomeração, em busca de um prudente banho de sol e de mar. Armamos a sombrinha e as cadeiras e ficamos nos espreguiçando. Aline prefere um sol direto e ficou ali em colóquio com o Astro-Rei. Preferi me resguardar debaixo da sombrinha e saquei “Machado de Assis Historiador”, de Sidney Chalhoub, para prosseguir a leitura de algumas páginas.
No finalzinho de 2020 havia resolvido com um grupo de colegas e alunos a retomar uma prática de 2019: de ler e debater algumas obras literárias escolhidas pelas próprias pessoas, sem quaisquer obrigações acadêmicas ou certificações, apenas pelo prazer de ler e trocar algumas ideias. Em 2020 essas coisas ficaram malparadas, mas resolvemos retomá-las agora. A obra escolhida para os primeiros dias de Janeiro foi “O Alienista”, do grande Machado de Assis. Como o livro de Chalhoub dormia numa prateleira junto com Raymundo Faoro e John Gledson (também sobre o Bruxo do Cosme Velho), aproveitei para tirar os três do sossego em que estavam e os levei como opção de “leitura praiana”.
Perto de nós apenas duas Marias-farinhas, Severina e Severininha, que em vão tentei fotografar. Severininha defendia valentemente o seu reduto e saía de lá vez por outra para espiar o que se passava no campo de luta da beira mar. Minha proximidade por perto devia ser um transtorno para a brava moradora do lugar. Não sei se ela gostava de Machado de Assis e de Sidney Chalhoub, mas eu preferi não perguntar a ela sobre seus padrões estéticos e preferi incomodar o menos possível a amiguinha (isso digo eu, ela deve ter me achado algo terrível e ameaçador).
As briosas Severina e Severininha observando o nheco nheco dos seres humanos.
Até umas 10h30 a grande maioria da cidade ainda parecia dormitar, o Bessa continuava semideserto e eu avançava na leitura, entretido com um banquete no qual pontificava um peru com o qual o pai de Brás Cubas comemorava a deposição de Napoleão Bonaparte. Por volta desse horário a ocupação da praia começava a adensar e um casal com dois meninos chegaram para aproveitar os ares bessenses. Começamos a falar sobre a conveniência de sair ante o sol forte e a chegada de mais gente à praia, nada de pressa, mas aquele começo de “vamos embora”. Alheio a isso, eles se postaram numa distância prudente, abriram sua sombrinha e cadeiras e as crianças começaram a bater bola e se divertir. Tudo dentro do lúdico e do praiano, muito tranquilo.
Continuava o banquete da família Cubas quando o jovem marido decidiu partilhar seu gosto musical com os circunstantes. Nada de mal ou excessivamente alto, mas uma dada música parece que empolgou mais do que o peru da distinta família da nobreza tanoeira. E lá se ouve em notas sonantes:
Amoreco, amoreco
Tou com saudade do nosso nheco nheco
Amoreco, amoreco
Tou com saudade do nosso nheco nheco.
Não houve peru, família Cubas, Machado de Assis e Sidney Chalhoub que segurassem a onda, o jeito era bater em retirada tal e qual os muçulmanos abatidos pelo antepassado da ilustre família do finado memorialista e se conformar com a perda das cubas para os valorosos cavaleiros da cruz. Portanto, uma retirada com certo elan se fazia necessária para evitar um charivari (essa ideia foi copiada de papai em uma de suas tiradas jagopianas). Caminhamos pra casa, tomamos um banho revigorante e fizemos planos para o almoço.
Comida marinha exigia prioriade: um peixinho, um caranguejinho (Severininha não!!!), um camarãozinho, ou qualquer dessas coisas barrocamente terminadas em “inho” ou “inha” e que, na verdade, sempre são “ão” ou “ona”, tais como feijoadinha, cervejinha, linguicinha e todas essas coisas pantagruélicas que costumamos a apelidar com diminutivos, tal e qual funciona a nossa dialética brasileira.
Dito e feito, rumamos para o “Goiamum do Maurício”, na Torre, onde pudemos provar essas delícias marítimas para coroar gastronomicamente esse Domingo de Sol.
Tudo correu às mil maravilhas, mas jamais esperávamos a aula de História Bíblica que pudemos ouvir depois de uns quarenta minutos após a nossa chegada. Na mesa próxima, um Senhor muito empolgado falava que João não era o mesmo João. Que um João escreveu o Evangelho e o outro era o outro. Não calhavam de aparecer as denominações de Batista nem Evangelista, mas a história seguia firme, com alguns dados pra lá de inusitados e a transubstanciação de um João noutro João, de tal forma que até agora não sei bem qual era o cidadão.
Num dado momento, soube que um dos “João” teria sido torturado num caldeirão de óleo fervente, a mando daquele que incendiou Roma e como não deu certo foi para a Ilha de Patmos, “que ainda existe”. O assunto derivou para alguma dessas histórias atuais de milagre acontecido, para a qual o escapamento inconveniente de uma moto impediu de saber bem o enredo e o desfecho. Depois foi mencionado um Curso que o distinto estaria fazendo para saber de todos esses portentos e o ensopado de camarão, que então chegava à nossa mesa, ocupou o proscênio de minha atenção.
Mais uns dez minutos e a história se completou:
— Foi Pilatos que meteu fogo em Roma!!!
Para gáudio de toda a assistência, especialmente o meu, fiquei sabendo de altas peripécias de Pilatos e esperava a entrada de Caifás e do Sinédrio em cena quando chegou o peixe e o pecado da gula me impediu de saber melhor os meandros dessa intriga. Só sei que Pilatos lavou as mãos num dado momento de sua trajetória e uns trinta e poucos anos depois meteu fogo na Cidade Eterna, destronando Nero de seu posto. Considerando metaforicamente a água e o fogo, talvez Pilatos tivesse trabalhado com água na Cagepa e depois tenha mudado de ramo e ido para os negócios ígneos na PBGás. Sabe-se lá o que o peixe me impediu de vir a conhecer sobre esses mistérios insondáveis.
O incendiário Pilatos lavando as mãos após tentar fritar João e calcinar Roma em uma de suas muitas tropelias.
Do nheco nheco às peripécias de Pilatos, fui ruminar sobre a origem das coisas e os rumos da existência numa soneca reparadora, mas desconfiado que o fino senso sociológico dos meus alunos na Escola João Alves dos Santos em Campinas resolve pra lá de bem o dilema. Numa dessas ocasiões fortuitas da vida, lá pela aurora do corrente século, na qual reclamava de algo para a petizada, ouvi essa fina análise, que serve de coda para esse besteirol dominical escrito numa Segunda-feira inútil:
“– Calma, fessôrrr, tá tudo dominado!”.