Jô Soares, ao morrer na sexta-feira, 5 de agosto, era um patrimônio nacional. Para além do clichê, isto significa que ele tinha alcança...

Jô, foste rei!

jo soares humor televisao brasileira
Jô Soares, ao morrer na sexta-feira, 5 de agosto, era um patrimônio nacional. Para além do clichê, isto significa que ele tinha alcançado uma notoriedade e um respeito praticamente unânimes por parte dos brasileiros, de tal modo que passou a ser visto como uma das riquezas humanas e culturais do país, orgulho da raça. Não é pouca coisa, sabemos, principalmente porque ele foi antes de tudo um comediante, ramo artístico nem sempre levado a sério, até porque dedica-se a nos fazer rir, mesmo que com toda seriedade crítica, como era o caso. E também porque o Brasil, nos últimos tempos, não tem contado com muitas figuras do seu naipe, mas, pelo contrário, tem se despovoado cada vez mais de homens e mulheres credores da admiração pública.

Ramón Vasconcelos
Na verdade, Jô foi mais que um genial comediante. Foi ator, diretor e escritor, entre outras coisas mais, sempre despontando com seu imenso talento artístico e sua vasta cultura, constituindo-se realmente num refinado intelectual, capaz de trafegar com desenvoltura em várias línguas e assuntos diversos, o que o distinguia, sem dúvida, entre seus pares. Na condição de entrevistador, ele teve oportunidade de mostrar seu cabedal cultural. Foi homem de muitos livros, de muitos filmes, de muitas peças de teatro, de muitas músicas (eruditas e populares), enfim, alguém que consumiu e produziu cultura como poucos no país.

Posso dizer, assim como muitos de minha geração, que o acompanho desde o começo de sua carreira na televisão. Lembro-me perfeitamente de “A família Trapo”, nos anos 1960,
CC0
programa humorístico dos primórdios da TV brasileira, ainda em preto e branco, com o grande Zeloni, Ronald Golias, Renata Fronzi e Renato Corte Real. Se não me engano, ele fazia o papel do mordomo da casa, sempre engraçado e, creio, já gordinho. Aos poucos, foi firmando seu nome artístico, conquistando espaços cada vez maiores na televisão e no teatro, até se tornar uma celebridade absoluta, ao lado de, por exemplo, Chico Anísio, outro gigante. Criou e/ou interpretou personagens inesquecíveis, como o Capitão Gay, o Reizinho, Padilha, Múcio, Norminha, o Exilado, entre outros, todos incorporados ao cotidiano dos brasileiros com seus bordões geniais. Numa época de muita censura, ele soube falar por nós, com muito humor.

Cheguei a assisti-lo no teatro, no Rio, one show man. Sozinho, valia por um elenco. Completo domínio do palco e da plateia. Segurança de quem é mestre em seu ofício. Carioca, escolheu viver em São Paulo, mas conservou sempre a leveza dos seus conterrâneos. Gordo, em alguns momentos, até mesmo obeso, sempre se cercou de belas mulheres, comprovando o poder sedutor da inteligência (e do dinheiro).

Isaac Luz
Pessoalmente, apesar de admirar seu incontestável talento, achava-o esnobe, infantilmente vaidoso de ter morado na infância no Copacabana Palace e de ter estudado na Suiça, onde se tornou poliglota. Só a contragosto falava nos vínculos paternos com a Paraíba, já que seu pai foi irmão de Órris Soares, fundador do extinto jornal O Norte, e, diz-se, seu tio-bisavô foi o ex-governador (ou presidente) da Paraíba, Camilo de Holanda. Sempre achei, pelo que vi, que ele não valorizava muito essas origens paraibanas, como se elas de certa forma diminuíssem ou ensombrecessem, com sua rusticidade, sua condição civilizada e cosmopolita tão ciosamente cultivada.

Zé Paulo Cardeal
Com seu programa de entrevistas, modernizou, nessa área, a televisão brasileira e abriu espaço para programas semelhantes. Neste ponto, foi um verdadeiro inovador e adiantou-se à própria Rede Globo, que, à época, não topou bancá-lo na qualidade de entrevistador. Veja-se o quanto era ainda atrasado o país, pois na Europa e nos EUA os programas de entrevistas na TV já faziam sucesso há anos. Aliás, em certa medida, o programa de Jô copiou assumidamente alguns de seus congêneres estrangeiros, mas isto não constitui nenhum demérito, pois até para copiar é preciso talento.

Evelson de Freitas
Em sua vida pessoal, parece que não foi muito feliz. Casou diversas vezes e seu único filho, falecido, era especial. Ele se dedicou muito a esse filho, o que depõe demais a seu favor. A mim, sempre pareceu um solitário, a despeito de tudo que conquistou profissionalmente. Fez muita gente rir, ganhou a vida arrancando risos das pessoas, mas, fora da ribalta, sempre pressenti uma sombra de tristeza em seu semblante e em sua voz. E aqui vale uma observação: ele sempre foi um ótimo entrevistador, mas não se saía bem como entrevistado; quando era ele a responder as perguntas, perdia a verve habitual e chegava a ser até monótono. Ninguém é perfeito.

Com sua morte, o Brasil vai se empobrecendo ainda mais dessas figuras notáveis. Assiste-se a um generalizado despovoamento de valores nacionais. O país, em todos os setores, vai sendo dominado pelo baixo clero, até mesmo por gente totalmente desqualificada. E o que é pior: sem nenhuma graça.

Jô, foste rei!

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também