Quando caminhava pelo sítio por entre carrapichos, no aceiro das conversas entre os mais velhos sempre estava a situação de penúri...

Fome na terra de Canaã

Quando caminhava pelo sítio por entre carrapichos, no aceiro das conversas entre os mais velhos sempre estava a situação de penúria em que as famílias viviam, a seca e a carestia predominavam como assuntos, enquanto as panelas sobre trempes coziam a gororoba, mesmo sendo pouca. Crescia a escassez pela procura da mão-de-obra alugada e os engenhos perdiam a força produtiva devido ao aperto dos bancos. Tudo isso contribuiu para a expulsão de famílias que encheram as pontas das ruas.

A exploração humana ganhou perfeição um século depois do 13 de Maio, a escravidão revelada de outras formas sem o uso do chicote nem do tronco para o castigo, métodos igualmente desprezíveis.
Mariano Carbó
Mas aperfeiçoou e expandiu a sujeição no cambão e no cabresto, o mesmo patrão que recolheu a riqueza continuar a usar o braço do pobre. Esse pobre que fica cada vez mais pobre.

A fome continua na mesma paisagem de séculos passados, semelhante a que Padre Ibiapina presenciou no sítio Santa Fé de Arara, e se compadeceu quando, aos famintos, distribuía punhado de farinha e cumbuca com água.

Numa frase lapidada por José Américo de Almeida, revelada em A Bagaceira, oferece dimensão do sufocante quadro da fome, que amolece qualquer duro coração. “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto: é não ter o que comer na terra de Canaã”.

Em Os Miseráveis, Victor Hugo revela a expressão maior da miséria humana e da opressão, mas aponta a sinceridade da mão benevolente.

Murillo
Se antes os desvalidos percorriam distâncias sobre as pedras esfareladas nas terras esturricadas do Sertão, hoje pisam o calçamento e o asfalto escaldante à cata de migalhas rejeitadas pelos cachorrinhos. Se tiver coração bondoso, a cena de pedintes pelas ruas nos faz derrear a cabeça sufocada pela situação de penúria.

Outro dia, desesperada, uma criança, para não furtar, apelou à polícia. Reduzida a trapos com seus irmãos e a mãe de peitos murchos, no desespero da barriga vazia, recorreu a quem é pago para protegê-lo da violência. Agora não foi a violência física, mas a violência da fome, que é pior das violências.

Há muita sabedoria nesse gesto da criança faminta, suponho, fruto de iluminação divina. Mais cedo ou mais tarde, Deus escuta o clamor dos pobres. O menino poderia, guiado pela fome, furtar para alimentar os irmãos. Buscou socorro no corpo policial, esse mesmo que o reprimiria e levaria ao cárcere se pego com alimento furtado. Entretanto, para a Lei, abriu seu coração faminto em clamor e humilhado. A Lei é implacável com o desnutrido que furta uma banana na feira e complacente com os que se locupletam dos recursos públicos. Claro que abominamos ambos gestos, mas existem contradição na aplicação da Lei.

Lillian Lucy Davidson
O caboclo João dos Anjos, casado com parente minha, possuía dois hectares de terra onde plantava seu roçado, cultivava frutas, tinha pequenas criações e muitos meninos. Se não possuía fartura, à mesa nunca deixou de ter o ovo estrelado e, quando a fava era amarga, misturava com rapadura. A barriga roncava, mas nunca pegou galinha no terreiro alheio.

Os pobres vivem a buscar o monte, esse monte bíblico onde pairam esperanças e certezas. O monte elevado, o monte alcantilado, como fala o poeta São João da Cruz, lugar onde Deus habita, onde tem aragem e consolo nas noites escuras e nos dias claros, revelado em tudo. Com os cinco pães e dois peixes, a multiplicação da refeição preparada coletivamente.

Quando entendermos a forma de repartir os dois peixes e os cinco pães, não haverá mais crianças que durmam com a barriga oca por causa da fome.

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