Vez por outro me deparo com alguém surpreso por eu ter deixado o curso de Medicina no quarto ano. O fato ocorreu há muito tempo, mas ainda hoje a recusa a me formar causa perplexidade e mesmo raiva em algumas pessoas.
Raiva? Explico. Poucos aceitam que alguém vá de encontro a metas socialmente impostas. Desrespeitar a convenção é pôr em xeque os referenciais que orientam o funcionamento da sociedade. O maior deles é ganhar dinheiro, e para isso necessita-se escolher cursos teoricamente rentáveis. Medicina, como se sabe, é um deles.
Raiva? Explico. Poucos aceitam que alguém vá de encontro a metas socialmente impostas. Desrespeitar a convenção é pôr em xeque os referenciais que orientam o funcionamento da sociedade. O maior deles é ganhar dinheiro, e para isso necessita-se escolher cursos teoricamente rentáveis. Medicina, como se sabe, é um deles.
Não por acaso ouvi de um colega que, transferindo-me para Letras, eu acabaria morrendo de fome; levando-se em conta a média salarial dos professores brasileiros, a observação tinha o seu cabimento. Outro colega preferiu manifestar o seu desdém numa velada suspeita quanto à minha identidade sexual: “Letras é curso de moça!”.
Esse tipo de reação me atingia porque se somava a um quadro no qual se alternavam taquicardia, suor frio, sensação de morte. A divisão entre o magistério de português nos cursinhos e as aulas do curso médico no Hospital Santa Isabel tinham desencadeado em mim um violento processo de somatização.
Apesar de ter desistido já perto de me formar, não acho que foram inúteis os anos que passei no curso. A experiência nos hospitais nos leva a compreender melhor o sofrimento humano. A doença e, por vezes, a vizinhança da morte nos tornam humildes.
Impressionou-me sobretudo o período em que estagiei num hospital para indigentes. Ali a medicina servia para que nós, acadêmicos, aprendêssemos a clinicar e passar remédios. Nem sempre havia no almoxarifado o que os doentes precisavam tomar, e costumávamos receitar um placebo. Em alguma medida esse recurso inócuo abrandava a angústia dos enfermos, que diziam se sentir melhor. Percebi então que a confiança, se não cura, melhora muito o estado do doente.
Deixei o curso médico disposto a assumir o que sempre considerei minha vocação. Nascido em família de professores, convivi desde cedo com a rotina de salas de aula, correção de provas, comentários sobre o desempenho e a disciplina dos alunos. Eu gostava de ir ao Colégio Diocesano Pio XI, do qual um dos meus tios era diretor, para circular pelos corredores e ver nas classes os mestres postados diante dos alunos. Aquele me parecia um papel importante, e nos meus sete ou oito anos eu alimentava o desejo de desempenhá-lo.
A nossa época, utilitária e monetarista, tende a menosprezar o que nos indivíduos são propensões ditadas pelo mais íntimo de cada um. Esse descaso traz sofrimento e pode levar ao naufrágio de muitas vidas. Se a gente é o que faz, fazer aquilo para o qual não se se nasceu tira à existência o sentido.
Sei que isso é utópico, mas sonho com uma sociedade em que as pessoas não estranhem nem rejeitem o fato de alguém trocar um curso hipoteticamente mais rentável, porém com o qual não se afina, por outro em que experimenta a satisfação de produzir e ser útil. Afinal, como diz o velho ditado, só se vive uma vez.