Para o aniversário desta cidade que também é minha.
Vir de São Paulo para São José dos Campos, de manhãzinha, com o ônibus roncando, a neblina dançando e o sol surgindo por detrás das montanhas, era um prazer que atenuava um pouco a saudade e a falta que o avô me fazia.
Sentado no banco de madeira do jardim do Sanatório Vicentina Aranha, ele logo se distinguia na paisagem, com a sua batina negra de padre ortodoxo, o cachecol cinza enrolado no pescoço e um gorro de veludo bordô de onde deslizavam longos cabelos brancos. Era uma figura! Uma figura alta, pálida e magra, sempre pronta para embarcar em direção à Eternidade...
A cada crise do avô, o medo de que fosse a última me transportava para uma geografia de assombros, que percorríamos de mãos dadas pelas alamedas daquele parque. Só uma vez tocamos no assunto que silenciávamos. Então com o coração aos pedaços, eu ouvi ele me explicar a tênue linha que separa a vida da morte, que tantas vezes se cruzavam naquele jardim tão belo! A casa principal também era linda. Lembravam-me tudo. Menos o fim. A única separação que o avô lamentava era a de nos deixar.
Medo de morrer? Por que, se já vivera tanto? Tanto que não pertencia a lugar algum da terra, desde que perdera sua Rússia!
Não pertencia mais nem aos sonhos, nem aos pesadelos da existência. Nem havia mais tempo para somar, multiplicar ou modificar o já vivido. Só para poetar. Ofício que eu deveria aprender a reconhecer nas entrelinhas da vida: no rastro das estrelas ou das formigas, no sibilar do vento entre os arbustos, na aurora anunciada pelo galo, no voo rasante do bem-te-vi sobre as azaléas.
Tudo isso viria em meu socorro tão logo ele partisse. Ou melhor, sempre estiveram à minha disposição, alertava-me ele. Além dos novos livros que me fariam companhia em outras viagens, trazendo testemunhos de outros fantásticos personagens.
Traços de nuvens roxas, a Mantiqueira lá longe e o vento frio de julho que prossegue soprando forte entre os muros do Sanatório em São José dos Campos, espaço agora aberto à população como um grande parque. Não, não é possível perder esse referencial gravado na alma para o caos urbano que tenta abocanhá-lo.
Cidade é presença e memória. Geografia humana e cartografia dos afetos. Morada dos vestígios daqueles que se foram e também viram o casario, a estação de trem, o arvoredo, o rendilhado da serra, o vale aberto para o espetáculo do sol em seu crepúsculo às margens do rio. Os habitantes precisam abrir suas janelas e perceber o passado no presente. O tempo. A vida com as suas alegrias e tristezas, com os seus personagens repletos de experiências, de histórias e de poesias de hoje e de ontem.
Era em São José dos Campos.
E quando caía a ponte
Eu passava o Paraíba
Numa vagarosa balsa
Como se dançasse valsa.
O horizonte estava perto.
A manhã não era falsa
Como a cidade grande.
Tudo era um caminho aberto.
Era em São José dos Campos
No tempo em que não havia
Comunismo nem fascismo
Pra nos tirarem o sono.
Só havia pirilampos
Imitando o céu nos campos.
Tudo parecia certo.
O horizonte estava perto.
Havia erros nos votos
Mas a soma estava certa.
Deus escrevia direito
Por pequenas ruas tortas.
A mesa era sempre lauta.
Misto de sabiá e humano
O meu vizinho acordava
Tranquilo, tocando flauta.
Era em São José dos Campos.
O horizonte estava perto.
Tudo parecia certo
Admiravelmente certo.
Salve, Cassiano Ricardo.
Viva São José dos Campos!
Benção, vô!