Para o bem, ou para o mal, nada nem ninguém detém a unanimidade das opiniões. Sempre há quem queira e não queira, quem goste e não goste. É assim, sem escapatória, com tudo aquilo nos envolve, emociona e acalenta. Lembra daquela pessoinha por quem você se apaixonou aos 15 anos, aquele docinho de coco? Pois bem, revire a memória e você encontrará quem a tinha por xaroposa e sem graça. O poema que sua alma declama, a canção das canções, o perfume indispensável? Não se iluda: muitos não perderão um segundo com isso.
Este 5 de agosto, fim da programação de mais um aniversário de João Pessoa e da celebração à Santa a quem a cidade tomou para a bênção e proteção, remete-me aos antigos bazares, pavilhões, parques e novenas da Festa das Neves, coisas entre o amor e o ódio, evento que muita gente abominou e ainda abomina, no que pese o encantamento de sucessivas gerações.
Pessoalmente, gostei muito de tudo aquilo que vi, pela primeira vez, em princípios de 1960, no pátio da Catedral, ao longo da General Osório e circunvizinhanças. Até porque os brinquedos, o vai e vem das pessoas e o culto religioso a cargo, um por noite, de nomes do comércio, da indústria ou de órgãos classistas lembravam-me das festas do interior, quando em menor escala as ruas da minha cidade se embandeiravam, disparavam girândolas, acordavam com bandas e dobrados e adormeciam com retretas.
Décadas antes de mim, o saudoso Mário Moacyr Porto, homem com passagens admiráveis pelo mundo jurídico, acadêmico e empresarial, tomava-se de amores pela Festa das Neves. Contou-me ele em entrevista feita para a extinta “A Carta”, a revista do não menos saudoso Josélio Gondim:
“Quando eu tinha 15 anos e morava em João Pessoa, as mulheres, as casadas e as mais jovens, desfilavam muito elegantes, todas com chapéus, na antiga Rua Nova (a General Osório de hoje). Era tempo da Festa e dos jornais de estudantes”.
O octogenário Mário, que já fora reitor da UFPB, desembargador do Tribunal de Justiça da Paraíba e dirigente da Mineradora Tomás Salustino, no Rio Grande do Norte, falava-me, na ocasião, com a alma na adolescência. Contou-me da primeira desilusão amorosa. Desprezado pela moça que o enfeitiçava, foi até o poeta Américo Falcão, então diretor da Biblioteca Pública, em busca da vingança. Queria uns versos a serem publicados como se fossem seus. Algo que começasse assim: “Não estou ligando importância a quem não gosta de mim”.
“Veja só a minha desonestidade intelectual”, comentou comigo, às gargalhadas. O despeito em sua manifestação mais ridícula, como definiu a própria reação, não impediu que fosse atendido pelo poeta. E foi isto o que o jornalzinho trouxe para o público da festa: “Um trovador que padece/disse numa trova dolente:/a gente nunca esquece de quem se esquece da gente./Não creio em tal e ofereço/esta verdade sem fim:/o mais depressa me esqueço/de quem se esquece de mim”.
Mas é preciso dizer que os jornaizinhos de festa não atendiam, unicamente, a propósitos tão cândidos. Também podiam servir ao deboche de figuras públicas. O mesmo Mário narrou-me este episódio: “Havia um delegado pequenino que não largava um charuto enorme, razão da zombaria popular. Lá vem um charuto fumando o doutor Péricles, dizia-se”. E o jornal de estudantes publicou: “O dr. Péricles de Melo/bacharel Jeca Tatu/quando é tu escreve vós/e quando é voz escreve tu”.
O homem assim insultado foi até a Gráfica de “A União”, que imprimia o jornalzinho, em busca do autor da desfeita. Abelardo Pessoa, sobrinho do presidente João Pessoa, levou a culpa sem merecê-la. Mas a importância do nome fez o homem sossegar e dar o caso por encerrado.
Surpreendi-me quando, ainda muito novo, comecei a ler acerca da insatisfação de motoristas, moradores, donos de lojas e escritórios com locomoção e negócios prejudicados pelo bloqueio de ruas onde instalavam-se, por dias a fio, os pavilhões, bazares e brinquedos da Festa das Neves longe da unanimidade, até ela, como logo percebi.
A percepção seria reforçada com a leitura, tempo depois, de “Reminiscências de viagens e permanência no Brasil”. Mas, nesse caso, o missionário americano Daniel Parish Kidder, autor desse livro, detestou a cidade quase inteira. O “quase” fica por conta de uma exceção: a paisagem descortinada da chácara do habitante de origem inglesa do qual o atual bairro do Roger tomou o nome.
Kidder chegou a recomendar o uso de mosteiros e conventos católicos aqui existentes como espaços de melhor proveito para o povo. Que servissem a escolas, por exemplo. A insuficiência de estradas e o fabrico e consumo de cachaça, evidentemente, não escapariam de suas críticas por volta de 1840, quando aqui esteve. O moço falava, na época, de uma cidade com cerca de 2 mil casas e 9 mil habitantes.
Desembarcado das asas da Sociedade Bíblica Americana, o homem que vendeu Bíblias em muitas partes do Brasil e, assim, teve papel destacado nos primórdios do protestantismo brasileiro, não pouparia, é claro, a Festa das Neves cuja versão, em muito hoje modificada, agora se finda.
Escreveu ele: “Terminada a novena, todo o povo acorria ao campo para apreciar os fogos de artifício que se queimavam desde as nove horas até depois da meia-noite. Os que tivemos ocasião de ver eram muito mal feitos. Não obstante, o povo se pasmava e aplaudia freneticamente. Se se tratasse de divertimento para africanos ignorantes, seriam mais compreensíveis essas funções. Mas como parte de festejos religiosos celebrados em dia santificado e com a presença entusiástica de padres, monges e do povo, temos que confessar, francamente, que nos chocaram bastante e teria sido melhor que não os tivéssemos presenciado”.
Pois é, há quem goste e não goste, quem queira e não queira. Eu e você, com tudo aquilo que fazemos ou desejamos, sempre desagradaremos a alguém. E que assim seja. Perguntemos sobre a necessidade da concordância absoluta àquele jornalista e dramaturgo pernambucano para quem toda unanimidade é burra. Também, a quem escreveu, muito apropriadamente, que a unanimidade somente existiria com a fé dos cegos e o silêncio dos críticos.