Continuo fazendo a garimpagem na internet e descobrindo algumas pérolas. A mais recente é a seguinte: Três coisas salvariam o Brasil: "memória histórica, interpretação de texto e consciência de classe”. Comentarei a principal delas, sobre a interpretação de texto, e passarei rapidamente pelas outras duas.
O que, realmente, poderia salvar o Brasil? Direi, sucintamente, que a nossa salvação está na educação. A memória histórica é importante, mas depende diretamente da educação, a partir de que se pode entender o que significa cultuar uma memória, formadora de um conceito de nação. Não somos uma nação, somos um amontoado de estados, formando uma federação frouxa, com distinções regionais enormes e, no mais das vezes, desconhecidas. Por outro lado, a memória nunca foi o nosso forte. Na realidade, somos muito bons na dilapidação do nosso patrimônio histórico, no apagamento de nossa identidade e de nossa história.
Por outro lado, qual é a nossa real necessidade – consciência de classe ou consciência social? Consciência de classe só me cheira a mais segregação. Cada classe chama para si melhorias e pouco se importa com as demais. Divide-se a sociedade em classes, para que ela possa funcionar melhor, mas ela deve ser um todo e isso só é possível, quando temos uma consciência social. Falar, portanto, da necessidade de consciência de classe é fechar-se para uma evolução social. Só a educação poderia nos levar a progredir socialmente, vendo a sociedade de modo integral, em que cada classe tenha a sua importância efetiva na construção do bem estar comum. Diga-se que isto não funciona como uma ação mecânica de causa e de efeito: há educação, então haverá consciência social. Não é assim. Mas é, sem dúvida, ainda o melhor caminho.
É daí que eu pego o gancho para falar da interpretação de texto: a educação é o melhor caminho. Educação gratuita, obrigatória e de qualidade que, infelizmente, não existe. Como chegar à interpretação do texto sem acesso à escola e sem uma educação fundamentada na leitura? Leitura leva tempo e um acompanhamento paciente, paciência que a escola, dita moderna, não tem. Por outro lado, falta-nos um projeto de Estado para a educação, que não temos e nunca tivemos, e duvido que o tenhamos, tendo em vista o tipo de legisladores e de chefes de executivo que elegemos. Vivemos insistindo no erro, buscando pais e salvadores da pátria.
Façamos um exercício nesta eleição que se avizinha e procuremos ver o que dizem os candidatos sobre educação. Observe-se que NÃO HÁ CANDIDATO QUE SEJA CONTRA A EDUCAÇÃO. Todos os discursos, no entanto, são generalizantes ou vazios de sentido. Em geral, são mais do mesmo: “Vamos lutar por uma educação de qualidade”... Neste exercício, façamos uma experiência, perguntando aos candidatos o seguinte:
▪ Qual o seu programa para uma educação qualidade?
▪ Quantas escolas há em cada município e em cada estado?
▪ Qual é a população estudantil dos municípios e do estado?
▪ Quantas escolas a mais serão necessárias para o atendimento de todas as crianças, sem exceção?
▪ Quanto será necessário investir para que não falte educação básica a todos?
▪ Quantas escolas precisam de reparos imediatos e de melhoramento de sua infraestrutura?
▪ De onde virá o dinheiro?
▪ Como vão ser captados os recursos?
▪ Qual o orçamento atual para a educação?
▪ Como ele é distribuído e investido?
▪ Qual o número de estudantes que deverá existir, no ensino fundamental, em sala de aula, para que o processo educacional avance?
▪ De quantos professores a mais a rede pública necessita?
▪ Quais são os programas de capacitação obrigatória e periódica para os professores?
▪ Como fazer para realmente remunerar condignamente o professor?
▪ Quais os instrumentos de cobrança aos professores?
▪ Qual o programa de restituição da autoridade do professor e de obrigação de responsabilidade dos estudantes?
▪ Quais os meios exequíveis para trazer a comunidade, sobretudo os pais, para ajudar no trabalho da escola?
Veja se o seu candidato consegue responder a estas questões e faça seu julgamento. Caso não haja respostas, e não haverá, estaremos diante da tenebrosa perspectiva de mais quatro anos perdidos, por não termos entendido que a falta da educação gera tragédias sociais.
Em Os sertões (“O Homem”, Capítulo V, p. 194, Ubu/SESC São Paulo, 2019), Euclides da Cunha diagnosticou que Canudos era produto da ignorância e do descaso da sociedade. Consciente de que a solução para o caso não era a guerra, ele expõe o diagnóstico com fina ironia:
“Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados...
Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.
Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador – a bala.”
Em vez de educação e assistência, enviamos, para o combate a fanáticos e miseráveis, modernas carabinas como a mannlicher e a comblain, e muita bala. Só na quarta expedição, em “A Luta”, Euclides se refere a “cem toneladas de munições de guerra” (Parte IV – Quarta Expedição, Capítulo II, p. 342), dentre as quais, “esparzidos profundamente pelos ares mais de um milhão de balas” (Capítulo IV, p. 387), além das “balas mergulhantes de dezenove canhões modernos” (p. 388), não podia ter dado senão em tragédia. Isto foi há 120 anos. Continuamos sem um projeto educacional.
A situação vivida por Euclides nos mostra um bom exemplo de que sem escola desaparecem a memória, a consciência social e a interpretação dos fatos que formam a sociedade, não só a interpretação de textos. Uma lástima...