Escutei o soar do triângulo e corri a ver. Carregando ao lado do ombro um tambor, avisando a passagem pela rua dominical de uma saudade da infância. Aquela sonoridade que acabou, pensava eu, volta resistente pelo corredor despido de pessoas, naquela tarde fagueira sem laranjais.
Homem do povo a deixar ecoar pela desnuda atmosfera o tililingo do chamado para quem quisesse a guloseima. A voz do bem antes pairando no ar. Como, de repente, houvesse um redemoinho do tempo e tudo voltasse à Rua da Areia, quando os meninos paravam a bola de meia e saíam aos gritos: “Cavaco chinês!” Passei a língua nos lábios.
Emília, minha esposa, da mesma geração dessas musicalidades e sabores, foi rápida em tomar o elevador, indo comprar do cavaco. Nome estranho, talvez para quem não conhece. O cavaco chinês se derrete na boca como (comparando mal, por respeito) uma hóstia fina consagrada.
É sutil, leve, quase transparente em sua contextura. Como foi benéfico provar, novamente, a peça enrolada, se desmanchando nas mãos não mais de criança. Tudo sob um assovio de magia clara, de resgate palatino do que eu nem me lembrava mais. O vendedor é remanescente dos muitos que percorriam a província de Nossa Senhora das Neves. Um dos tipos vendedores de ilusão em formato de produtos não industrializados, sem marca, recomendações, nível de glútens e outros informes.
Eita, a partir do vendedor que, há pouco, dobrou a esquina, deixando morrer o som do triângulo, lembrei o leiteiro, o pipoqueiro, o doceiro, enfim...
Mamãe ficava à porta e seu Antônio apertando a buzina, anunciando a proximidade do leite trazido na carroça. Todos sabiam que era “batizado” o líquido despejado no vasilhame, denunciado pela cor azulada do excesso d’água. Assim mesmo, dava coalhada e a nata nadava sobre a superfície da panela tirada da fervura. O doce de côco (que a meninada moleque deslocava o acento, tornando a palavra oxítona) de engolir a língua, chamado de “americano” – pregava nos dentes e eram os pedaços extraídos com os dedos.
Era a culinária da época, em grande quantidade, herdada de antepassados. O beiju, o cuscuz, a tapioca, tudo vendido pelas ruas afora. Até o pão vinha desprotegido na boleia da carroceria da caminhoneta de seu Honório (quem pensava em higiene, germes, e outras alimárias invisíveis?).
Às vezes, suado, pegava o produto de cada dia com as mãos e soltava nas cestas à disposição. Pois bem, estou à espera de mais cavaco chinês. Quando escutar o tililingo, bem longe, sei bem: por ali vem uma amostra retroativa, uma infância sem mistura de veneno, um sinal de que no rolo do cavaco chinês se esconde a lembrança e o sabor de tempos idos, bem vividos.