Cronista inspira cronista. Acontece muito. A gente lê uma crônica de outro autor e se sente tentado a abordar tema semelhante ou pareci...

Capa dura (ou a dimensão estética da vida)

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Cronista inspira cronista. Acontece muito. A gente lê uma crônica de outro autor e se sente tentado a abordar tema semelhante ou parecido sob ótica diferente – a nossa. E desse processo, diga-se, têm resultado, não raro, bons textos; às vezes, até melhores que os originais. Isso vai muito na linha de que em literatura nada se cria de verdadeiramente novo desde os gregos e Shakespeare, o que é verdade, penso eu. Não se trata de plágio, claro, mas apenas de dar um outro enfoque ao assunto. Muitas vezes, toma-se apenas um pequeno detalhe, uma rápida passagem, uma mera citação do texto original, e, partir dali, cria-se um cenário novo, um olhar distinto, uma escritura que nada – ou muito pouco – tem com o ponto de partida.

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Pois bem. Estava a ler recentemente, no jornal O Globo do último 7 de julho, uma crônica de Cora Rónai sobre as edições de capa dura e edições de luxo. Escreveu ela que durante muitos anos resistiu a essas edições especiais, achando que, em um livro, qualquer livro, o mais importante era o conteúdo e não a embalagem. Dizia ela que na casa paterna havia muitos livros e pouco dinheiro, o que é compreensível, já que ela é filha do grande Paulo Rónai, húngaro que veio para o Brasil ao tempo da Segunda Grande Guerra, com apenas duas malas, como a maioria dos refugiados. É possível que a influência europeia do pai, com sua ancestral rejeição ao supérfluo e ao desperdício, e a dureza dos primeiros tempos da família Rónai no Brasil tenham contribuído para essa “aversão” da cronista às edições de capa dura e às edições de luxo.

Mas ela própria, agora aos 68 anos de idade, confessa que finalmente rendeu-se ao encanto das edições especiais. Demorou muito, mas aconteceu para ela não digo a vitória da forma sobre o conteúdo, o que não seria nunca desejável, mas, digamos, a vitória da valorização da forma ao lado conteúdo, sem prejuízo deste. Vejo nisso o triunfo da dimensão estética da vida, tão desprezada ou desconsiderada por muitos, pessoas que, por diversas razões, passam a existência ao largo da beleza, indiferentes ao belo, em suas múltiplas manifestações.

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Essa dimensão estética da vida pode parecer para muitos trogloditas frescura ou futilidade. Mas não é, de forma alguma. É apenas, por exemplo, a opção pelo bonito ao invés do feio; a escolha do aprumado no lugar do torto; a preferência pelo que agrada aos sentidos (a visão, a audição, o tato) em detrimento do que desagrada. Uma questão, como se vê, simplesmente de ficar com o que melhora ou pode melhorar a fruição da vida, em seus vários aspectos. Não há nenhuma dúvida, para absolutamente ninguém, creio eu, a respeito da superioridade de uma edição de luxo de um livro (ou de uma simples capa dura) sobre uma brochura, por mais caprichada que esta seja. Do ponto de vista do texto, não muda muita coisa ou praticamente nada, talvez o tamanho das letras, mas quanto aos aspectos visual e táctil, quanta diferença!

É claro que geralmente a estética tem um custo, nem sempre ao alcance do bolso da maioria das pessoas. O que é belo e de qualidade normalmente é mais caro, compreende-se. Mas às vezes a diferença de preço é tão pouca! E quantos não decidem, mesmo podendo, pelo mais barato – e, consequentemente, mais feio. Falta a esses argentários, não o dinheiro, mas aquela dimensão estética da vida.

O bom é que não é preciso ser rico para cultivar a estética. Basta um pouco de bom gosto e sensibilidade, e o problema está resolvido. Não raro a casinha simples bem arrumada agrada mais aos nossos olhos que a mansão ou o apartamento imenso. O bom gosto é como o bom senso: todo mundo pensa que tem, são as qualidades supostamente mais democráticas que existem. Mas o fato é que ele não é privilégio dos mais afortunados; sopra onde quer, como o vento.

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Mas voltemos aos livros. Nos Estados Unidos e na Europa, a regra, pode-se dizer, é a capa dura. Existem as edições em brochura, claro, que são mais baratas, óbvio, mas a preferência maior do público não é por elas. Normalmente, as brochuras são compradas por estudantes, por pessoas de menor renda e por avaros. No Brasil, sabemos, prevalecem as brochuras, tendo havido, nos últimos tempos, uma maior oferta de edições em capa dura ou de luxo. Evidente que uma brochura decente resolve, mas o prazer de tocar e contemplar uma edição diferenciada é incomparável. É frescura? É futilidade? Não. É apenas o gozo, legítimo, da dimensão estética da vida, graça que se recebe ao nascer ou se conquista com sensibilidade e esforço, quando se aprende a valorizá-la. Ou seja, quando se reconhece que ela não é futilidade nem frescura. ​​

Haverá (sempre há) quem pense que num país como o Brasil, em que milhões passam fome, não se justifica falar em estética. Penso que uma preocupação não exclui a outra, com prioridade, claro, para os famintos. Estou convencido de que mesmo em meio à maior penúria, sempre sobrará um espaço, mínimo que seja, para se escolher o belo. A miséria, sabemos, é feia, mas nela, repito, sempre poder-se-á plantar uma sementinha de beleza. E isso, óbvio, faz e fará toda diferença.

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