Terminei de ler A casa das letras, de Abelardo Jurema Filho (Fecomércio PB e MVC/Forma, 2022), e fiquei pensando nos mistérios da vida. Explicar-me-ei melhor a seguir.
Abelardo nasceu no Rio de Janeiro em meados do século passado, onde viveu uma infância de classe média, mas de certa forma privilegiada, uma vez que seu pai, cujo nome carrega com muita honra, era na época político de reconhecido prestígio, tendo sido líder do governo Juscelino Kubitschek na Câmara dos Deputados e ministro da justiça no governo João Goulart. Suas perspectivas, portanto, eram alvissareiras, como se dizia antigamente. Não tivesse havido o golpe de abril de 1964, que derrubou o presidente Goulart, e a consequente cassação do mandato de seu pai, logo exilado no Peru, pode-se dizer que sua vida teria sido outra. Imaginemos.
Abelardo nasceu no Rio de Janeiro em meados do século passado, onde viveu uma infância de classe média, mas de certa forma privilegiada, uma vez que seu pai, cujo nome carrega com muita honra, era na época político de reconhecido prestígio, tendo sido líder do governo Juscelino Kubitschek na Câmara dos Deputados e ministro da justiça no governo João Goulart. Suas perspectivas, portanto, eram alvissareiras, como se dizia antigamente. Não tivesse havido o golpe de abril de 1964, que derrubou o presidente Goulart, e a consequente cassação do mandato de seu pai, logo exilado no Peru, pode-se dizer que sua vida teria sido outra. Imaginemos.
Sem os problemas vindos com a súbita adversidade, Jurema Filho teria provavelmente continuado sua juventude dourada, estudando, namorando e se divertindo, como qualquer outro jovem nas suas condições. Não teria ido trabalhar precocemente no banco de Newton Rique, não teria começado como “foca” no Jornal do Brasil e não teria vindo morar em João Pessoa, então uma provinciana capital de duzentos mil habitantes. Sua vida teria sido, portanto, totalmente diversa da que terminou sendo. E aqui é impossível não lembrar os versos de Manuel Bandeira: “a vida inteira que poderia ter sido e que não foi”, os quais já viraram clichê, reconheço, mas que nem por isso perderam a validade – e a beleza.
Nesses casos, sabemos, uma pergunta costuma se impor: a mudança de rumo que atropelou, como um trem, o jovem Abelardo foi para melhor ou não? Foi, afinal, positiva ou negativa? Ninguém pode saber. Nem ele próprio pode responder. Esta é a verdade. Pois quem pode ter certeza sobre o que teria sido sua existência carioca, mesmo com todos os bons auspícios? Tudo indicava, sim, que seu futuro seria promissor no Rio. Mas quem garante que seria mesmo assim? Mistérios da vida.
O fato é que ele veio para a Paraíba, formou-se em Direito e iniciou duas carreiras vitoriosas: como jornalista (nessa atividade suas casas têm sido os jornais O Norte, Correio da Paraíba e A União) e como defensor público. Mais ainda: tornou-se, ele próprio, um personagem da cidade, uma referência na vida social da capital, hoje uma moderna e progressista urbe de quase um milhão de moradores. Aqui formou família, com esposa, filhos e netos; aqui construiu uma legião de amigos, extensão do numeroso clã familiar; aqui deu, com inegável brilho, continuidade ao nome paterno que tanto orgulho lhe dá. Sem falar que tornou-se membro da Academia Paraibana de Letras, a casa das letras de que fala seu novo livro. Valeu a pena? Acredito que sim. Pelo menos é o que posso depreender da leitura de sua mais recente obra, na qual, através de saborosos textos autônomos, está narrada essa caminhada de mais de quatro décadas, caminhada essa que começou na casa da Rua Cesário Alvim, 27, na cidade que continua maravilhosa, apesar de seus políticos nefastos.
O livro, belamente prefaciado por W. J. Solha, foi dividido em seis capítulos temáticos: O acadêmico, O homem, A família, Os amigos, Prosa e Sabores e dissabores, terminando com um Álbum de memória, com inúmeras fotografias do autor nos mais variados momentos de sua vida. Pode-se compará-lo com um inventário dos feitos e bens acumulados por Abelardo, ao longo dos anos, e também com um painel social e sociológico da cidade, cujo desenvolvimento ele acompanhou de perto – e continua acompanhando -, como cronista e colunista, e, ao mesmo tempo, como cidadão sempre atento aos rumos, nem sempre otimistas, da urbe adotada. A propósito, nesse sentido, a cidade tornou-se sua casa maior, de cuja janela ele assiste à passagem dos temas e atores de suas crônicas e notas.
Seus textos retratam, em linhas gerais, cada luta, cada dificuldade e cada vitória de sua rica e movimentada trajetória. Refletem, com fidelidade, os tijolos diários que foi colocando, um após outro, na construção da obra de sua vida, seguindo, neste particular - mas não só nele -, o exemplo do pai, que certa vez lhe disse: “Meu filho, todos os dias antes de dormir eu penso se coloquei um tijolo e só me deito tranquilo quando percebo que a construção continua subindo”.
Nas suas crônicas e artigos também estão proclamadas, com todas as letras, as suas gratidões, prova de seu caráter. Solha, no prefácio, registrou esse aspecto. Neles comparecem, de corpo inteiro, aqueles e aquelas que o ajudaram, de uma forma ou de outra. São tantos, que nem dá para citá-los neste espaço limitado. Tirando obviamente seus pais, aos quais deve, para começar, a existência, a formação e os exemplos, selecionei apenas um nome para representar seus benfeitores, sabendo, por suas próprias palavras, o quanto ele lhe é significativo: o de sua irmã Rosalinda, que partiu ainda moça e lhe protegia ardente e amorosamente como uma “gata selvagem”.
A casa das letras do título do livro é a Casa de Coriolano de Medeiros, lugar fundado para congregar harmoniosamente os intelectuais paraibanos e para promover e defender as nossas letras aldeãs. Como o Jurema pai, Jurema Filho nela entrou por méritos pessoais e disso se orgulha. E com razão. E a cada nova obra publicada, mais ele justifica, para si e para todos, a titularidade desse honroso domicílio.
Vê-se então que todo seu itinerário de jovem e de adulto, dos anos dourados aos setenta anos recém-completados, decorreu do golpe de 1964 e do exílio paterno, com todas as consequências imagináveis. Terá sido, portanto, a vida que daí resultou, desses fatos difíceis, a que lhe estava desde sempre, desde o nascimento, realmente reservada pelo destino ou pela providência? Não há como saber, salvo se se acreditar no determinismo de tudo. A realidade, a simples e palpável realidade concreta, é que ele, por força daquelas circunstâncias incontroláveis, terminou vindo para a terra dos começos dos seus pais, para recomeçar. E agora, ao entardecer, cabelos grisalhos sob a cultivada melena negra, certamente pode fazer suas, com toda a autoridade, as palavras célebres do César triunfante: “Vim, vi e venci”.