Madrugada fria, noite de chuva mansa, devagar o dia entra neblinoso pela janela da sala. É muito cedo. Hora de silêncio puro, a cidade ainda dorme. Meus pensamentos conversam entre si no tom de acordar o sono. Sinto em presença ausente os distantes, onde pousaram os que voaram deixando suas histórias vibrando em mim. Fotos avivam o filme da memória. Tudo é nada no vazio da ausência não preenchida.
Mas o vazio é zona de descanso, espaço para a saudade entrar e vir com a bagagem das viagens que marcaram histórias. Sentimentos preenchem o descontrole do invisível, sinto as mãos de minha mãe de unhas perfeitas, as lágrimas dos olhos cegos de meu pai chorando de rir com seu riso tímido. Fatos que leio nas fotos, procuro-me onde não me acho.
A outra face do silêncio é a palavra insistente que ronda o travesseiro e me impede de dormir.
Os filhos casaram, tiveram filhos, uso óculos para perto e para longe. Prefiro lentes degradê, ver com filtro para que o excesso de luz não me fira os olhos. Tenho tempo para me esticar na madrugada em instantes de completa felicidade, a sensação de ter acertado a mão na vida.
Não leio o tempo com pressa demais. Se tem uma coisa que embola o peito é amar sem medida de durante, amar faz susto. O coração pulsa pelos meus, por eles em suas histórias, as crianças que criam a expressão dos dias. A noite uma pausa fácil, vírgula.
A trama da madrugada não pode ser vista a olho nu, dorme sob o efeito do sonho. E nesta cama a mulher sou eu. Sou uma mulher que sonha mas não é próprio uma mulher da minha idade sonhar. Mas não é a idade que sonha, esta não conta, o que em mim sonha é a mulher.
O sólido silêncio faz a realidade se tornar delicada e como é bom ter por companhia o abstrato da véspera, amanhã é outro dia.
No espaldar da cadeira amarela a malha de lã roxa largada pelo avesso. Palavras viradas compõe o feitiço de uma escrita desconhecida que vai se auto escrevendo, livre, fios soltos se alinham no script da alma. Lá fora a quaresmeira espera as luzes do orvalho. Olhos parados no teto, página em branco para escrever poemas. E quando as palavras faltam estou com Deus, guardo o amor agarradinho no peito, puxo as cobertas, apago a luz do abajur.