Era uma noite de mistério e suspense. Algo soturno emanava da atmosfera da fria madrugada de início de ano. O gélido cenário enevoava a silhueta do palácio, que se estendia em sombras pela vastidão da praça .
A imensa edificação, com quase quinhentos aposentos, de tantas histórias abrigadas em ambiciosa e colossal arquitetura, acervo de bibliotecas e obras de arte da imperatriz Catarina II, sede oficial do império, residência de inverno dos czares, havia de ser o palco ideal escolhido para a justa manifestação que estava por vir.
A discrepância entre o modo de vida de seculares dinastias do império russo estampava-se naquelas fachadas, com sombrios reflexos a se projetarem por toda a praça, às margens do Neva, no coração de São Petersburgo.
Frio e austeridade intensificavam o grave silêncio de uma cena em que beleza e tristeza se confundiam. Ecos da história impregnavam-se aos rigores do inverno da portentosa capital imperial. Os contornos dos imponentes frontões, adornados por estátuas e cornijas, emolduravam o magnífico conjunto arquitetônico, soberbamente edificado à frente do enorme pátio a reluzir adormecido e coberto de neve na densa madrugada. Da magnificência que ressaltava ambiguidades e distorções entre povo e poder, exalava premonitória expectativa de todos os ângulos da obscura noite.
Os minutos passavam e diluíam-se lentamente na gelada penumbra, descrita pelos tímpanos, quase em surdina. A música invoca a alma popular que soava longínqua e entoa suavemente o tema da velha canção revolucionária dos trabalhadores russos “Ouçam!” (Слушай!), que clama por justiça. A seguir, a doçura das flautas se sobrepõe momentaneamente ao ominoso panorama, mas o entorno se mantém glacialmente lúgubre .
Assim, o compositor russo Dimitri Shostakovich descreve “A praça do palácio”, título com que nomeou o primeiro movimento de sua 11ª sinfonia. A praça em que se registrou uma das mais lamentáveis páginas da violência humana na história do mundo, em um dia que ficou conhecido como “Domingo Sangrento”.
A canção popular inicial retorna com súbita ênfase, introduzida por percussão e metais, e em seguida surge nas cordas e em outros timbres.
Era “O ano 1905”, primórdios da revolução russa. Assim foi intitulada a 11ª sinfonia, composta em 1957, no 40º aniversário da fatídica revolução de 1917. Na majestosa obra, Shostakovich conta a história do triste episódio de janeiro daquele ano. A história de um movimento que se construiu pacífico, a partir de uma petição escrita por líderes do povo sequioso de inalienáveis direitos que lhe foram usurpados pela tirania do império. Uma grande passeata, guiada por um padre, levaria o documento ao Czar, com justas e modestas ponderações: terra para plantar e sobreviver, liberdade e conforto para poder viver.
O primeiro movimento se encerra no mesmo clima em que se iniciou, esboçando com fidedigna expressão musical o proscênio da madrugada à espera da multidão que para lá calmamente marcharia. Os tambores rufam ao longe e os metais anunciam os primeiros raios de Sol a cintilar suavemente por trás do palácio e já conferiam tom levemente dourado ao tapete de neve que cobria o extenso largo, na noite que se despedia...
Amanhece o “9 de janeiro”! Com este dia Shostakovich nomeia o segundo movimento. Sob o céu nebuloso e a cidade ainda dormindo, divisa-se uma massa que se movimenta lentamente em direção à Praça do Palácio. Era a multidão que caminhava confiante nos nobres propósitos.
Ritmada, a jornada se desenha no tremular das cordas, e com os sopros introduzem o tema contido no segundo dos “10 poemas corais” compostos pelo autor, com textos de poetas revolucionários:
A música já se reveste de tom idealista e obstinado, revolve-se em crescentes ondulações e converge para inevitável tensão. Aos poucos, a aglomeração que se move, ainda distante, surge maior, e, com a música, ganha corpo e movimento. Traços de uma jornada heróica vão se acrescentando, e mais instrumentos aderem à orquestração que se enrobustece à medida que o povo caminha. Uma nova exposição do tema soa feérica e destemida, revelando que é densa a massa popular que se aproxima. Em seguida, a calma retoma o andamento do perseverante cortejo .
A partir daí, o compositor liberta sua reconhecida índole sinfônica, estende-a por vários instrumentos que soam veementes em admirável textura polifônica, consolidando a importante missão que já se contempla vultosa.
Os metais ganham corpo, valorizam o significado da marcha e do público que se avoluma por todos os ângulos. Ali estava a verdadeira alma russa, do povo forte, criativo, trabalhador e corajoso de então, disposto a reivindicar pacificamente o que lhe era devido. Mesmo diante da opulência arquitetural do ostentoso palácio, eles não se intimidaram em manter o pleito, cientes de que eram vítimas de uma exploração que já extrapolava o suportável.
Chegam à Praça do Palácio de peito erguido e brios compostos. Para retratar o espírito inabalável da resiliência ao que se propunham, Shostakovich cobre com sua autêntica personalidade a mais épica exposição do tema principal .
Agora que já estavam dispostos no almejado local, começam calmamente a se acomodar no grande lajedo pavimentado. A música arrefece e os ânimos se calam à espera do amanhecer e de seus sonhos. Os anseios eram pacíficos, aliados aos sentimentos de justiça que lhes fortaleciam a fé e a coragem outorgadas ao reverendo George Gapon, pronto para formalizar a demanda do povo ao czar Nicolau II. Todos estavam convictos que suas razões o sensibilizariam, crentes de que com o poder absoluto nas mãos, pudesse lhes conceder meios dignos de trabalho, salários justos, sem a exploração a si imposta pelos empregadores. Ao final, pediam o fim da guerra contra o Japão, sério agravante da situação popular.
Como as sucessivas greves e manifestações públicas contra as deploráveis condições não vinham surtindo efeito, empenhavam nesta passeata todos os esforços, da forma mais pacífica possível. Reunidos na grande praça, refletiam silentes, confiantes, mas à sombra de indisfarçável dúvida. A convicção que os fazia empreender o maior movimento revolucionário visto até então, fortalecia-os intimamente, sem sequer imaginar que ali nascia o processo que guiaria os russos às futuras conquistas, culminadas com a revolução de 1917.
A sensação agora era de que o tempo havia parado, sob a tensão que se espargia em tudo e de tudo. À sua frente, delineava-se a imagem da imponência, do poder que os governava há tantos séculos, o que lhes provocava, inevitavelmente, mais suspense, aumentando a expectativa da incerteza. Pois estavam conscientes de que nenhuma arma possuíam, salvo a estóica firmeza de seu intuito. A sinfonia esboça a ansiedade coletiva no suave rufar de tambores que acompanham os pizzicatos. Agora todos aguardavam as imponderáveis reações do palácio, ainda sob os resquícios da álgida madrugada.
O silêncio era cúmplice de inevitável apreensão diante de tamanho vislumbre de domínio, a reverberar na ostensiva fortaleza à sua frente, erguida para deleite de castas empoderadas no cruel imperialismo. Ainda que imbuídos do mais legítimo intento, a díspar situação era incerta e por demais intimidatória. Shostakovich consegue definir a cena com um lamentoso pedal de cordas .
Algo então se anuncia. Luzes e sombras se percebem em movimento dentro do palácio, descritas pelos trompetes que intensificam a ânsia. Alguma coisa os espiava. Tubas e trombones reiteram a angústia acerca do que os espreitava.
De repente, abrem-se os portões! Aos poucos, avistam-se tropas que se avolumavam arregimentadas em grupos postados militarmente à frente do castelo. Imperava a surpresa. Por quê e para quê enfrentar com tanto aparato gente simples e desarmada? Nenhuma atitude dos que ali estavam justificava aquele tipo de reação. Mais e mais soldados surgiram e rapidamente tomaram conta de toda a linha de frente do palácio. Medo e angústia se espalham no povo que se intimidava perante a magnitude da legião ali instalada.
Enfim, o exército inteiro partiu para cima da multidão, pasma e inerte. O pânico substituiu as esperanças e agora só restava fugir .
Ouve-se o episódio mais estrondoso e violento de toda a música. Rajadas impiedosas são lançadas, matando, ferindo todos com desalmada crueldade. Sem nenhum poder de reação, o massacre não demorou e logo se descortinou o apogeu de uma desgraça. O piso da praça, antes coberto pela neve, agora sangrava vermelho, salpicado de centenas de corpos sem vida. As tropas russas se erguem soberbas após concluírem o terrível ato, com empáfia suficiente para ignorar a fuga dos que ainda escapam ao longe e voltam aos portões de onde saíram.
Restou o mais sepulcral silêncio como pano de fundo do terrível ataque. Ao final, Shostakovich exprime em contrita sonoridade a profunda desolação da tragédia que se espalhou por todos os cantos daquele passeio público, salpicado de corpos e sangue misturados à da neve. Trompetes e sinos ressoam distantes, sugerem melancolia, esperanças perdidas, sucedidos por triste menção à melodia popular citada no início da sinfonia. Ruína e amargura findam o andamento que precede o terceiro.
Nada seria mais apropriado do que uma marcha fúnebre para traduzir a compaixão diante da insidiosa reação das tropas tiranas. Uma antiga marcha marxista usada em funerais: “Vocês caíram como vítimas” (Порой изнывали пред). Ao nominar de “Em Eterna Memória” o terceiro movimento da sinfonia, decerto o compositor tencionou perpetuar em sua obra a dor provocada por tamanha perversidade contra trabalhadores que traziam no peito apenas o desejo de ver consideradas seus anseios de amparo e justiça. O desalento perante a miséria em que se transformou o pleito, pacificamente hasteado, resplandece paradoxalmente na comovente melodia. Introduzido e ritmado por graves pizzicatos, o tema da pesarosa marcha tem sua primeira exposição calmamente evocada pelas cordas. Em seguida, é reproduzido com mais ênfase à enlutada consternação .
O compositor reserva à parte central do terceiro andamento um intermezzo em que imprime toda a força de sua expressão, talvez o trecho mais eloquente e apaixonado de “O Ano 1905”. Como se quisesse ressuscitar ao evo, justamente no meio da marcha fúnebre, o espírito de luta a se manter perene nas perspectivas de futuras conquistas do povo. Inicia-se calmo e penoso, narrando o que pretende de maneira saudosa, nostálgica, e caminha para um dos grandiosos “crescentes” das páginas sinfônicas. Aos poucos, os ideais germinam do solo ensanguentado, desabrocham renovados e se agigantam no vigor musical.
O coroamento deste Intermezzo ressoa épico, ao cume da robusta retórica em que o idealismo transfigura-se em júbilo soberbamente guarnecido por tímpanos, pratos e gongos. Com os fundamentos de honra renascidos, o tema da marcha é retomado para a convicta finalização de sua mensagem.
Em surpreendente reviravolta, emerge inusitada euforia, a demonstrar que nem tudo se perdeu. Principalmente o entusiasmo ideológico e a perseverança que manterão o povo unido em suas aspirações.
A sinfonia agora cavalga veloz e feérica, estruturada em novo contexto, preservando os fragmentos temáticos de sua trajetória, que vez por outra afloram em meio ao brioso colorido. O ritmo acelera-se incitante, simultaneamente jovial e militar, como a compensar o trágico episódio da Praça do Palácio, que se revela em novas citações melódicas sobre canções revolucionárias de seu povo, a exemplo de “Ódio aos tiranos!” e “Bandeira Vermelha”, de origem polonesa:
Em contraponto a tudo o que se viveu nos movimentos anteriores, a alegria sobrepõe-se vibrante, e a música adquire um halo de ardorosa e contagiante resistência. A orquestra se agita em rodopios para reexpor o tema inicial da canção, que volta radiante e se repete em brilhante polifonia em diálogos exuberantes .
Atribui-se a aura que reveste o 4º movimento, denominado pelo autor como “Toque de sinos”, à esperança de que aquele “Domingo Sangrento”, que lamentavelmente manchou a história da humanidade, significasse o início do processo da revolução russa. O czar Nicolau II não estava no Palácio na fatídica manhã, e, ao saber do massacre, conta-se que lamentou consternadamente a investida fulminante de seus cossacos. Posteriormente, como tentativa de recompensar as funestas consequências, criou medidas político-administrativas em defesa das classes trabalhadoras. Isso encorajou o proletariado a empreender novas manifestações e a se organizar socialmente para fortalecer-se em busca de direito e justiça.
Tudo agora se prepara rumo ao ápice, um dos mais grandiosos momentos da sinfonia: a heróica referência à passeata em direção ao Palácio, quando o respectivo tema é resgatado e arrematado em triunfante aparato orquestral. Esse tema parece ser o favorito de Shostakovich, uma vez que o escolhe para ser enaltecido em três distintos momentos do andamento final, além de ter fragmentos citados em outros trechos.
As lembranças da madrugada defronte à Praça do Palácio, descrito no início da sinfonia, vêm à tona como algo que jamais será esquecido. Tais recordações provocam inevitável tristeza, transcritas para o dolorido canto do corne inglês. Há quem mencione este solo como um dos mais comoventes da literatura sinfônica, frequentemente tocado em bis de concertos, ou em performances separadas da obra. O lamento que a melodia sugere requer do intérprete grande sensibilidade artística para transmitir o “canto do cisne” que precederá o apoteótico final.
Shostakovich conclui sua 11ª sinfonia sob fúria arrebatadora, em que a todo o conjunto orquestral esbraveja voluptuosamente todas as formas de protesto contidas na estarrecedora história que descreve. A sinfonia se encerra com ostensiva participação dos sinos e metais a soar copiosamente no estrondoso final. Quando a orquestra se cala, permanecem vivas no ouvinte duas marcas: o ato de bravura pacífica do povo russo e a inominável covardia dos detentores do poder. Marcas que, pouco a pouco, fomentaram a consciência popular, fortalecida a partir daquele maldito domingo abrindo caminhos para que os bolcheviques destronassem a secular dinastia Romanov, alguns anos depois.
Esta obra alia-se a outras do repertório do compositor e reafirma o que o escritor e ativista marxista britânico, Alan Woods, descreveu sobre ele:
“Dimitri Shostakovich é a consciência musical da Revolução Russa”.
Podemos concluir que, assim como a Arquitetura, a Pintura, a Literatura registra em suas obras o modo de vida, as estruturas sociais, os sonhos e a mentalidade da época em que são criadas, a Música possui notável capacidade de descrever fielmente a nossa História. São obras como a Sinfonia “O Ano de 1905” que promulgam a Divina Arte e suas emoções, sem barreiras étnicas, ideológicas ou idiomáticas, utilizando-se do poder de transmitir sua mensagem acima de qualquer linguagem.