Há 63 anos, em 25 de Julho de 1959, consumou-se a morte de meu pai. Morrer aos 51 anos de uma forma dolorosa e impiedosa como a dele será sempre inaceitável e injusto. Sem rancor, a única coisa que ele repetia constantemente – "Minha Virgem Santa Mãe Deus, me conceda mais alguns anos para meus filhos, eles são tão pequenos ainda". Não fora atendido ao tão desejado e doloroso desejo. A ele foi concedida apenas a graça de interromper o sofrimento. Como o previsto, o seu generoso coração não resistiu ao excesso de morfinas que contribuiu decisivamente para encerrar o seu ciclo infernal de dores lancinantes provocadas por metástases ósseas.
O instante de sua morte foi terrível. Arquejante, nos olhava tristemente em paz. Tinha todos ao seu lado, a minha mãe, eu, minha irmã e, por último, D. Manuel Pereira, que chegara in extremis com a extrema unção, e logo segurara uma de suas mãos. Suava muito. E com o rosto pálido, embora tranquilo, seu último gesto foi de um suave e delicado olhar que lentamente fixava sobre cada um de nós para finalmente se repousar no triste semblante da minha mãe.
Lembro-me bem do seu olhar como se tivesse iluminado. Na medida em que ia deslizando sobre nós, refletia paz e serenidade. Hoje, mais do que nunca, tenho a convicção que, naquele epílogo, o momento supremo se tornara uma enorme libertação. Não havia choro, só o silêncio reinava absoluto. Soluços e lágrimas foram reprimidos para não aumentar o sofrimento da partida. Nada de medo, nenhum gesto desesperado.
Meu pai me transmitiria à ideia de que a sua morte seria o momento de um encontro supremo com a paz. O rompimento com a dor de sempre. Acho ele que vira, naquele instante, a morte como uma passagem necessária para ele, e para nós, embora tivesse lutado para postergá-la. Partindo, estava se liberando de um brutal flagelo físico.
Muito tempo depois, tive a consciência de que ele aceitara o momento da morte. Ao fechar os olhos, tive a sensação de que estava dormindo. Sonhando imóvel, com as feições exalando tranquilidade em um sonhar, e que ao acordar afagaria nossas mãos e, abraçados, nos transmitiria a paz de que ele e nós tanto precisávamos.
Com a morte de meu Pai, tive o primeiro e trágico momento de viver a morte. Anos depois, ao ler a dramática novela de Tolstoi "A Morte de Ivan Ilitch", obtive a compreensão de todas as fases dos moribundos prestes a morrer. Da estupefação face à injustiça divina quando são projetados para o fim, da agonia, do desespero, da resistência, do inconformismo, e finalmente, da aceitação e da preparação exalando o desejo de ter que partir. O ultimo ato é regido definitivamente pelo desejo de se liberar do sofrimento que a vida impôs. Paradoxalmente e tragicamente, os que vão morrer buscam numa tranquilidade terapêutica a generosidade atitude ao poupar o sofrimento dos seus que se agarram desesperadamente a um eventual milagre.
A obra de Tolstoi me ensinou que, pior do que morrer é viver desesperadamente no sofrimento, ou não saber viver. A morte tem uma energia liberadora, que como diz Albert Camus: o que seria da vida senão existisse a morte. Desde meus doze anos, e hoje na maturidade, entendi que não se deve temer a morte, ao contrario deve-se estabelecer sentimentos de tranquilidade e, sobretudo, de paz para enfrentar a passagem terrena. Ela virá numa agenda inexorável. Parece uma bizarria, mas assumo que tenho que definir os passos do meu enfrentamento à hora final. A preparação mental deve tranquilizar todos os meus. E transmitir a sensação de que, em sendo inevitável, a morte deve ser abraçada com muita paz, resiliência, e se possível, com um discreto sorriso no canto dos lábios. Para os meus, como educador que fui, quero entender a lição de que, ao morrer, deve ficar o aprendizado de se pode também dizer adeus com a felicidade que se teve em vida.
No dia três de maio de 2021, fui ser acometido de um grave bloqueio atrioventricular com arritmia cardíaca grave e braquicardia que me provocou um ritmo de doze batimentos (BPM) do coração, com uma inevitável parada cardíaca a qualquer momento. Teria sido aquele o dia da minha morte. Em meu socorro, veio um dos meus filhos. Encontrava-me no meio da natureza no Engenho Laranjeiras, e feito um bólido me levou ao Hospital Samaritano. Graças à pericia médica com o implante de um marca passo, in extremis, sobrevivi. A Providencia Divina me concedeu a continuidade da vida.
Deste evento, o que ficou em mim foi a grave sensação da desventura, que poderia não ter tido tempo de calmamente fazer os últimos passos à vista, da encenação para o ultimo ato da minha vida. Morrer subitamente seria uma desastrada “avant dernière” dos atos finais da minha vida.
Hoje, mais do que nunca, “estou pronto, em paz, feliz como se estivesse para morrer”. Aos meus, que ficam que diante da inexorável da fatalidade, o mais prudente é se deixar envolver pelos véus brancos que protegem as lembranças dos momentos felizes.
Não delegarei a ninguém os meus lapidares desejos que já são: Adormeci contrariado. E como acontece a qualquer criança, não mais acordei. Sonhos lindos e findos.