Editado em 1960, pela Livraria Freitas Bastos do Rio de Janeiro, "Vingança, não" foi um livro marcante. Recuperava um episódio da história do cangaceirismo por uma ótica duplamente original: pela mensagem de perdão e pelo envolvimento emocional do autor, na sequência dos fatos.
Com a beleza de sua palavra, com a coragem de expor as entranhas de um drama que poucos ousariam passar a limpo, com a severa imparcialidade que se impôs, padre Chico Pereira Nóbrega conquistou o público. Principalmente a juventude estudantil, tanto secundarista quanto universitária, de quem ele se tornou um líder.
Éramos todos seus leitores e corríamos para ouvi-lo em conferências inesquecíveis. Trazia uma pregação inovadora, questionamentos que vinham ao encontro de nossas inquietações. Não falava de céu, nem de inferno, nem de castigos ameaçadores. Falava da construção do ser, da vida e do amor, tema de sua predileção. E nos ensinava a pensar, a duvidar das verdades sacramentadas, das verdades ditas inquestionáveis.
O sucesso do livro trouxe logo a segunda edição, no ano seguinte ao lançamento. E, depois, as reedições permaneceram suspensas por quase três décadas. Era a consequência de revelações que alteravam substancialmente a história contada pelos vencedores. Por fim, a terceira edição veio em 1989 e a quarta, em 2002, patrocinada pela FUNESC.
O autor segue a clássica distinção aristotélica de que a história narra o que realmente aconteceu em determinado tempo e lugar. A arte, o que poderia ter acontecido, o possível de acontecer em qualquer tempo e lugar. Define seu livro como depoimento e não, romance. Sendo categórico na Introdução: "Poderia escrever em forma de romance, mas não quis. O real constrói mais que o imaginário". É uma declaração de princípio que se completa com outras duas afirmações: "Tomo, agora, a imparcialidade de quem não tem partido. Não é o filho, é o historiador quem fala".
Ler com atenção o preâmbulo é pré-requisito para a compreensão do livro, na perspectiva do autor: como "trabalho de precisão histórica". Essa precisão ele construiu, recolhendo a pluralidade dos pontos-de-vista através dos quais lhe foi contada a história, ao longo de muitos anos. Retirando da tradição oral a parte lendária. Buscando a confirmação dos fatos, através da pesquisa em processos criminais de seis comarcas, pertencentes a três Estados, e confrontando as versões com os jornais da época.
Também lhe serviu de subsídio um folheto autobiográfico, deixado pelo pai. Além da carta do Tenente Coronel da Reserva da Polícia Militar do Rio Grande do Norte, Genésio Cabral de Lima, relatando a execução de Chico Pereira, da qual ele participou, com outros policiais daquele Estado, em 28 de outubro de 1928, perto de Currais Novos. Espancaram, até a morte, o prisioneiro algemado. Desfiguraram-lhe o rosto. E simularam um acidente de automóvel para esconder O crime.
Esta carta constitui o documento de maior impacto, pela crueldade dos detalhes rememorados e pelo convencimento do Tenente, afirmando-se, ainda, um benfeitor da coletividade. Nele, o filho encontra a resposta para o mistério que envolveu, por mais de trinta anos, o desaparecimento do pai. Pode, enfim, ler o atestado de óbito e visitar a cova. Simbolicamente, consegue sepultar o pai.
É o objetivo do depoimento: reconstituir os fatos, preencher lacunas, restaurar a memória que as paixões deformaram. Sem fazer de Chico Pereira um herói.
A heroína é Jarda, a mãe que soube compreender, amar, resistir, perdoar e educar para o perdão. A mulher sábia e forte que se opôs ao que parecia fatalidade histórica, encaminhando os filhos para um outro destino.
Localizado no espaço e no tempo, o relato inclui as pessoas com os nomes próprios. Presidentes, coronéis, juiz, delegados, comerciantes, famílias, cangaceiros, etc., cada um com seu papel no tempo sociológico que o autor metaforiza pela semelhança com a geologia: "A era em que tudo era fogo, larvas devoradoras, explosões contínuas, desagregações. Era dos vulcões vomitando maldições". E logo se impõe a correlação: nas entranhas da sociedade, o sectarismo da política partidária, gerando o arbítrio, promovendo a impunidade e a injustiça, com a mesma força destruidora das explosões, do fogo e das larvas.
Começa a história com o assassinato do Coronel João Pereira, avô do autor, provocado dentro de seu estabelecimento comercial. Era o tempo das obras contra as secas, na Presidência de Epitácio Pessoa. O sertão encontrava, no atendimento aos operários das construções, um mercado consumidor significativo. E foi a disputa de poder político e financeiro, entre os proprietários de dois barracões, que originou o conflito.
Afirma o autor que "não é imaginação nem exagero". Depois da luta, o sangue "descia o batente, fazendo burburinho de água corrente". O Coronel João Pereira morreu, pedindo aos filhos Chico, Aproniano, Abdias e Abdon que entregassem à Justiça. Vingança, não.
Mas a Polícia, a serviço da política partidária, não prendeu o criminoso, sempre com desculpas evasivas que revelavam a cumplicidade. Então Chico Pereira, num gesto inusitado, pede permissão ao Delegado para trazer Zé Dias. E entrega o assassino do pai à Polícia.
Dentro de uma semana, recebe a notícia de que Zé Dias está em liberdade. Era a deformação do Estado de Direito na provocação insuportável. Chico Pereira passa a não enxergar outra saída, além da vingança. E, meses depois, Zé Dias é achado morto no meio da estrada.
Perseguido pela mesma Polícia que favoreceu o assassino de seu pai, Chico Pereira se fez cangaceiro.
"Vingança, não" reconstitui a trajetória dessa vida que, como tantas outras, as circunstâncias históricas e a injustiça precipitaram no desespero, na loucura da violência extrema.
O filho, padre e escritor, recupera os fatos. Com o poder da linguagem, atualiza episódios, diálogos, gestos que agora se perpetuam para o julgamento da história.
O domínio da linguagem permitiu ao historiador que utilizasse em seu depoimento todos os recursos da narrativa de ficção. Fazer viver os personagens, imprimindo-lhes identidade. Dar força e movimento às ações. Reconstituir a intensidade dramática dos fatos. Recuperar o tempo.
Rachel de Queiroz identificou essa qualidade do livro. E, no prefácio, registra, como ninguém mais poderia, o mérito do autor que escreve história, literariamente. Afirma a grande escritora:
"É um depoimento que impressiona pela honestidade. — e se às vezes, como obra de arte que é, se alça às puras alturas da beleza, nunca perde a severa imparcialidade que representa sua marca principal".
Pelos recursos da expressão, se fazem inesquecíveis para o leitor: os tocantes diálogos e monólogos interiores dos personagens; o desassombro dos homens, na violência das lutas; a insólita entrega de Zé Dias à polícia; a invasão de Sousa pelo bando de Lampião; a falta de saída, o isolamento, a desgraça e a resistência do cangaceiro; a deformação do aparato policial do Estado; a reação silenciosa e heróica de Jarda.
E que dizer do cavaleiro misterioso, em seu cavalo branco, aconselhando o perdão e desaparecendo para sempre no pingo do meio-dia? E do grito desesperado da mãe de Chico Pereira, ecoando à noite nos descampados e nas serras, chamando pelo filho que ela não sabia já executado e enterrado no Rio Grande do Norte?
Há muito se coloca a impossibilidade do limite entre a realidade e a ficção, sob a forma do questionamento repetido: se é a vida que imita a arte ou a arte que imita a vida. Constatando-se muitas vezes que a realidade vivida se apresenta bem mais fantástica e surpreendente do que a imaginação.
O depoimento do professor Francisco Pereira Nóbrega reitera esta conclusão.
E não é sem motivo que tantos leram essa narrativa, como se fosse um romance, apesar de todas as explicações do historiador e do ponto de vista adotado.
A evidência é que, entre a história e a ficção, os núcleos temáticos se correlacionam. De tal modo que, lendo Vingança, não somos naturalmente impelidos a lembrar Pedra Bonita e Cangaceiros de Zelins. E a constatação é de que a história vivida ratifica, em muitos aspectos, a verdade romanesca.
Comparando Aparício, o cangaceiro criado por Zelins, com Chico Pereira, grandes semelhanças podem ser apontadas entre os dois, desde a entrada no cangaço por imposição das circunstâncias.
A partir daí, a vida nômade, o isolamento, a solidão, o desespero sem saída. Não existe caminho de volta para o cangaceiro porque o poder de polícia se exerce como vingança e a justiça está morta.
Outro aspecto relevante nos dois enfoques é a humanização do personagem de ficção e do personagem histórico. Uma visível contestação à ideologia que reduz o cangaceiro a um ser monstruoso, a um bandido sanguinário.
Esse livro é único. Em parte reconstitui a tragédia de um cangaceiro, mas não se encontra aí o seu tema. Na verdade, é um livro sobre o perdão. E mais que isso. Sobre a felicidade de perdoar.A profunda relação com a família é o argumento incontestável. O cangaceiro amoroso, solidário, preocupado com os seus. O que mais é realçado na ascendência da mãe sobre o filho.
O confronto com a polícia reforça essa perspectiva pela descrição da perversidade como são tratados os cangaceiros, deixando sempre para o leitor a indagação: quem é o bandido?
O desassossego que recai sobre a família dos cangaceiros é outro ponto de convergência entre a ficção e a realidade. Ser irmão, filho, parente de cangaceiro é não ter lugar no mundo. É ser proscrito.
Na ficção de Zelins, é pela ótica da mãe de Aparício que esse problema se caracteriza como maldição. Personagem trágica, sinhá Josefina vai do desespero à loucura, matando-se, enforcada, por não poder mudar a sina da família.
Se os dois escritores se assemelham na colocação dos núcleos temáticos, são diametralmente opostos na visão-de-mundo que conduz o tratamento das questões. Zelins, filiando-se à tradição da tragédia grega, submete seus personagens à fatalidade. Ninguém se salva, todos são vítimas do destino impiedoso e absoluto.
O livro do padre Chico Pereira Nóbrega pertence a outra família do espírito. É uma contestação à fatalidade histórica. A comprovação de quanto pode a consciência humana.
É preciso dizer que o subtítulo não corresponde à dimensão do livro. E me perdoe a ilustre prefaciadora que tanto admiro. É uma injustiça classificá-lo de "mais uma história do Nordeste".
Esse livro é único. Em parte reconstitui a tragédia de um cangaceiro, mas não se encontra aí o seu tema. Na verdade, é um livro sobre o perdão. E mais que isso. Sobre a felicidade de perdoar.
Evitando que os filhos se tornem produto do meio violento, Jarda se torna o símbolo de um poder para o qual o mundo ainda não despertou. O poder da mãe na educação dos filhos. O poder da "professora rural de esmolada mensalidade" capaz de evitar a desgraça e mudar o Destino.
No Brasil conflagrado de hoje, quando as grandes cidades se transformaram em "sertões", "Vingança, não" ganha atualidade e faz pensar. É, ao mesmo tempo, a palavra que convence e o exemplo que arrasta.
Deveria chegar a todas as escolas e a todos os presídios, patrocinado pelo Estado e pela Igreja.