Há 40 anos, o Brasil acordava de ressaca. Eu, ainda na versão menino de 12 anos, assim os 120 milhões de brasileiros à época, despertavam naquela terça-feira, 6 de julho de 1982, certos de que o dia anterior estava apenas começando. Aquele 3 a 2 inexistia, era inaceitável. Os deuses da bola teriam descoberto algum equívoco e corrigiriam aquele desfecho.
Lógico que aquela cabeçada firme de Oscar no canto esquerdo do italiano Dino Zoff entrou no gol. A imagem estampada na história era a alegria explosiva do meia Falcão no gol consagrador de empate em 2 a 2 e não o choro de um menino nas arquibancadas do estádio. De alguma forma, os zagueiros brasileiros cortariam algum dos três chutes do atacante Paolo Rossi que balançaram as redes brasileiras. O juiz israelense Abraham Klein teria visto e marcado o pênalti escandaloso quando, nada gentil e provavelmente encantado pelo talento de Zico, arrancou um pedaço da camisa 10 do craque canarinho.
Quando o juiz apitou pela última vez no estádio Sarriá, em Barcelona, na Espanha, lembro que fiquei esperando algo. Era ilógico e inverídico que era um ponto final, aliás, um apito final. Não havia dúvida. Uma nova partida seria iniciada, surgiria um convite para que aqueles mágicos com a bola nos pés continuassem a jogar até levantar a taça, alguma autoridade faria o jogo recomeçar e determinaria o fim correto.
Aquele time vestido de amarelo era invencível e jamais seria derrotado pelos homens de azul, ou de qualquer outra tonalidade. Ele havia batido o temido uniforme vermelho soviético, o azul escuro escocês, o branco oceânico. Os hermanos vizinhos argentinos foram atropelados pelos brasileiros. E bastava o empate.
A véspera, o 5 de julho, simplesmente terminaria com aquele placar contrário de 3 a 2. Em 1982, o script era perfeito. Os últimos meses só reforçaram a convicção de que o caminho seria a taça e mais uma estrela verde bordada no peito. Mesmo sem o apelo do “Coloca ponta, Telê” ter sido atendido, o roteiro levaria até em 11 de julho, no estádio Santiago Bernabéu, em Madri, palco da final. O adversário seria certamente um grande coadjuvante e o título ficaria com o escrete canarinho. Não seria necessário aguardar mais 12 anos para gritar campeão, aliás, tetracampeão. A escalação dos heróis estava decorada: Valdir Perez, Leandro, Oscar, Luizinho e Júnior; Cerezo, Falcão, o capitão doutor Sócrates, Zico, Serginho e Éder. O comandante o inesquecível Telê Santana.
De quatro em quatro anos, pelo meio do ano (em 2022 será diferente), o país se transforma, veste as cores verde e amarela, faz uma espécie de trégua por causa da bola de futebol. Bom, cada vez menos isso acontece por motivos bastante conhecidos. Em 1982, o ar respirado no país era de alegria e certeza que teríamos replay de 1958, 1962 e 1970. O pesadelo de 1950 estava muito distante. O Brasil vivia os tempos da caminhada da volta da democracia, os exilados voltavam à terrinha, cantavam a liberdade meio que ainda envergonhada, mas seguiam os passos para enterrar a ditadura. Era hora de sair das noites escuras e voltar a sorrir.
E eis que há 5 de julho de 1982. O juiz apita o fim do jogo. No Centro de João Pessoa, mais precisamente no café apinhado de pessoas no Ponto de Cem Réis, onde eu e meu pai terminamos de assistir a partida após a primeira televisão a cores de casa quebrar, como um presságio, instantes antes do início do fatídico Brasil x Itália, os torcedores começaram a se dispersar cabisbaixos, procurando entender o que os seus olhos haviam visto.
Vários buscaram culpados. Outros despejaram raiva contra o coitado Paolo Rossi. Na final, a Azurra levantou merecidamente a taça. O tempo, de sabedoria suprema, sarou tudo. Os anos e os quadriênios copeiros se passaram, levantamos o troféu mais duas vezes, Baggio e Romário vieram e passaram, os alemães nos ensinaram com um 7 a 1 a viver uma nova ressaca monstruosa. Porém, da jornada junho/julho na Espanha ficou o orgulho danado da arte de jogar futebol. A Revista Placar está certa: “As derrotas são mais educativas”.
A cidade retomava algum movimento no meio da tarde. As ruas desertas durante o jogo voltavam a ter veículos circulando. Eu e meu pai saímos dali caminhando tranquilamente até uma parada de ônibus. Olhei para ele e perguntei inocentemente: “E agora?” Ele explicou com simplicidade que para o Brasil aquela Copa do Mundo havia terminado, que foi só um jogo de futebol em que se ganha, empata ou perde. E completou serenamente: “Em quatro anos tem mais!”. E no dia 6 de julho, uma terça-feira, o dia da ressaca, fui assistir aula. O mundo brasileiro voltava ao normal.