Três da tarde, começo de outono. Muita, mas muita gente, mesmo, nas mesas espalhadas pelas calçadas dos cafés e restaurantes de toda a cidade, sob o sol intenso, surrealisticamente frio. Largos e longos barcos descobertos, apinhados de turistas, indo e vindo pelo Sena, passando por baixo das tantas pontes. Uma multidão enorme – com muitos, muitos chineses, muçulmanas, japonesas com elegância de Audrey Hepburn em “My Fair Lady” - locupletando a vasta praça agitada por pombos, ante a catedral de Notre-Dame. Um despropósito, a fila que se estende pelo passeio de uma rua da mesma ilha fluvial – Île de la Cité - pra ver a Sainte-Chapelle. Uma quantidade assombrosa de gente nos ônibus abertos abarrotados, em todas as ruas.
Muito, muito turista ante as muitas, muitas rosas deslumbrantes e de luxuosa variedade de formas e cores, no jardim do museu de Rodin. Uma legião de curiosos em volta da Tumba de Napoleão e percorrendo os infinitos corredores do anexo, fantástico museu de armaduras e armas – Musée de l'Armée. Uma vasta nação cosmopolita entre as quatro gigantescas patas da Eiffel, de onde os elevadores de cores fortes sobem lotados. Outra, nas filas do museu d´Orsay. Outra, maior ainda, nas bases do Arco do Triunfo. Outra, fora e dentro do transparente e modernoso Centro Georges Pompidou. Uma fila dá voltas ante o Museu de L'Orangerie,cvisitantes de todo lado chegam à bela entrada do Palácio da Ciência (ou da Descoberta).
Babel.
Em meio a toda aquela estranha indiferença ao sol, eu e Ione comemorávamos nossas bodas de ouro, ouro não só nas esculturas da bela Ponte Alexandre III, como na cúpula em magnífico e áureo bordado, da Tumba de Napoleão, como na extraordinária ourivesaria elaborada do enorme relógio que preside o soberbo interior do museu d´Orsay, como na deslumbrante, reluzente porta do Petit Palais.
Independentemente disso, imagine o que foi, pra mim, passar pelo Portal da Virgem (o primeiro da esquerda, dos três, na fachada da Notre-Dame ,ela entre os outros onze signos do zodíaco,a comprovar que, segundo o grande Auden, “they were never wrong, / the Old Masters”, (jamais estiveram errados, / os Velhos Mestres).
Notre-Dame, que nos traz à memória os lances de Quasímodo, “O Corcunda de Notre-Dame”, do Victor Hugo, é uma obra arquitetônica extasiante. Eu me preparara pra ter uma decepção ao tê-la à minha frente, mas não: sua monocromática e quadrada força exterior (a pedra é de um ocre bastante claro), é impedida de ficar pesada pelo maravilhoso trabalho dos três portais, bem como pela faixa horizontal – mais acima - formada por uma infinidade de santos (magros e altos como os de El Greco), pelo círculo de uma enorme rosácea quebrando a exclusividade das retas, e – novo cinturão, ainda mais para cima - pela colunata finíssima, agora lá na base das duas torres laterais, o conjunto impressionando pelo jogo preciso de delicadeza e peso.
Aí, eu e Ione entramos... e Oh!... aquele gigantesco chiaroscuro!, a catedral com áreas trevosas em imenso contraste com uma miríade de luzes e cores filtradas de seus opulentos vitrais ogivais, tudo sob o insuperável triunfo... das enormes e luminescentes circunferências, uma delas a que víramos de fora, na fachada.
Mas o que pode tal demonstração de força ante a miraculosa leveza da Sainte-Chapelle – de um gótico superior, elegantíssimo – ali perto, na mesma Île de France - construída no século XIII por Luís IX, o futuro São Luís? Subimos, com esforço, os degraus em caracol e... desembocamos num superespectáculo. Meu deus: acho que jamais houve arquitetura que importasse em tanta arte envolvida em delírio, nem antes, nem depois. “Estou todo arrepiado!” – eu disse. “Eu também”, disse Ione.
Musée d´Orsay:
Eu assistira, algum tempo antes, a um documentário sobre a transformação da antiga e magnífica estação de trem no museu, e vira quando instalaram, nele, o grande quadro com aqueles dândis e a mulher nua fazendo um piquenique no gramado - o “Le Déjeuner sur L´Herbe”, do Manet. E lá estava o dito-cujo, mais o “Olympia”. Gostei? Não. Manet me pareceu frio, longe de tudo que alcançara seu ídolo, Velásquez, mas com uma fama conquistada – digo eu - pelo escândalo, no caso o obtido por se ter servido da modelo que posara nua pras duas telas. Viagem perdida? Em absoluto. Vimos, ali, um dos melhores autorretratos de van Gogh, bem como seu quarto em Arles, e a excelente – excelente mesmo - “Igreja de Auvers”. Vimos o famoso jogo de luz e sombra sobre os casais dançando no “Moulin de la Galette”, de Renoir, além de vários Monets, Degas, Chavannes, etc etc e... uma tela que marcara minha adolescência, num livro chamado “Primeiro Encontro com a Arte”, em que se reproduzia “As Respigadoras”, de Millet, que ali estava, diante de mim. A leitura deslumbrada me fez ver que as três pesadas mulheres que se curvam pra colher restos de espigas de trigo no campo, encontram equilíbrio, sim, num distante – e por isso fantasticamente minúsculo - cavaleiro que parece supervisionar a colheita. Pela primeira vez eu via a poesia arquitetônica da Arte.
Fomos, com o romancista Thiago Andrade Macedo - mineiro há pouco radicado na Paraíba, de quem eu resenhara “O Silêncio das Sombras” algum tempo antes - ao Musée de l´Orangerie, cuja atração principal é uma enorme pintura - “As Ninféias” - de Monet, que ocupa, em várias seções, as paredes de um imenso salão circular. Em que pese à lenda, nenhum de nós se empolgou. Fora isso, muito Renoir em fase muito verde e rosa, de que não gosto (Caramba, a idade está me deixando cada vez mais chato), muito Dufy (nenhum da fase de que gosto muito, a das figuras taquigráficas que se desencontram das cores), muito Modigliani (cujos retratados me parecem todos cegos, frescura como a de Botero fazendo todo mundo gordo, a de Giacometti, pondo todo mundo magro ). Ah, e deparei-me com duas gostosas naturezas-mortas de Cézanne, com suas compactas laranjas e maçãs pesando sobre as moles dobras de uma toalha branca.
E Rodin! “A Porta do Inferno” tem presença, carisma infotografável porque poderoso, nos seus 6 X 4 m de bronze reproduzindo cumes que tantas figuras tentam atingir, abismos pra onde tantas outras se veem prestes a despencar, tudo num desespero multitudinoso. O Dante que o escultor põe, meditativo, no alto – sempre me pareceu autorretrato – é o mesmo homem maçudo e nu que passaria, depois, a ter vida própria, com o título de “O Pensador”. Foi precioso ver quantas versões das cabeças de Victor Hugo e de Balzac e de cada um dos integrantes do angustiado grupo “Burgueses de Calais” ele fez – em argila, gesso, mármore, bronze, às vezes em grandes dimensões – pra chegar aos belos e enxutos monumentos que fomos encontrar no vasto jardim, lá fora. Arte, arte!: a festa prossegue, sempre móvel.
Mas....A quantidade de negros que vimos em Paris! – Casa Grande sim, e Senzala, muita: negros vindos de Gana, Senegal, Londres, Haiti - todos como carregadores de malas, garçons, garçonetes, motoristas de táxi, bilheteiros, seguranças e porteiros dos velhos museus, a nos informar, sem entusiasmo, onde está, por exemplo, a minúscula “Rendeira” do Vermeer do Louvre, que fui encontrar (de volta à Casa Grande) em meio a um aglomerado de admiradores, nem de longe igual ao que envolvia a Gioconda, do Da Vinci. No mesmo museu, outro ajuntamento, agora em torno de um trabalho extraordinário que me surpreendeu em Antonio Canova, escultor que sempre me parecera cheio de deuses e deusas greco-romanos sem vida: uma cena reduzida, em que Eros – de asas abertas – se curva sobre Psiquê estendida pra ele, em grande volúpia, expondo-nos a nudez impecável. Eu e Ione nos maravilhamos com os minúsculos... dedos de seus perfeitíssimos pés, com seus tornozelos, o encanto de suas mãos, com a quase inimaginável técnica que permitira a Canova a suave musculatura nas costas do jovem, de que brota a expansão de suas finíssimas asas.
Lá fora, através das vidraças: moças e rapazes, franceses fumando. Lá se fuma como nos tempos de Yves Montand e Camus, Jeanne Moreau e Sartre, em que ter um Gauloise ou Gitane entre os dedos-em-vê-como-os-de-Cristo, fazia parte do charme, glamour de artistas e intelectuais cultuados no mundo todo, talvez porque essa tenha sido a idade de ouro da Cidade-Luz, o que os fones de ouvido, nos ônibus descobertos, parecem confirmar, com tanta Piaff e Chevalier que nos fazem ouvir.
Nossos setenta e tantos anos se ressentiram das escadarias e mais escadarias de mármore por toda parte, uma delas a longa, larga, com vários patamares, que culmina na “Vitória de Samotrácia”. Aqui e ali – quanto alívio! – uma escada rolante, mas assim mesmo foi numa deles que, descendo, Ione tombou de joelhos e quase se precipitou, degraus abaixo, de grande altura, o que só não aconteceu por que ficamos algum tempo abraçados um ao outro, ajoelhados, com enorme esforço pra nos repormos de pé, ante a total indiferença dos que nos antecediam e precediam.
Marinetti, no Manifesto do Futurismo, quando disse que La Vittoria di Samotracia é inferior, em beleza, a um automobile ruggente, fez isso justamente por considerá-la exemplo, em extremo poderoso, de uma non plus ultra obra de Arte. E ela o é. Pouca coisa pode superar aquele ímpeto, aquela nudez de um corpo de mulher visível sob seus tempestuosos véus... de pedra, numa iminente arrancada alada que se dará no alto de uma proa qual a do Titanic, em que Leonardo DiCaprio faz Kate Winslet ser levada ao êxtase de igual emoção, algo a que nem a Flying Lady da tampa dos radiadores da Rolls Royce se equipara.
Ô, a gigantesca tela de seis metros e pouco por quase dez, com Napoleão se autocoroando ante o pasmo da corte e do clero, que me fez ver, em David, uma intenção explícita de cinema. A Barca Medusa, fantástica! A Virgem, Sant´Anna e o Menino, de Leonardo – sem qualquer espectador diante dela, apesar do estudo de Freud a seu respeito,ou de me parecer bem superior à Mona Lisa! A Liberdade Guiando o Povo, conhecidíssima em todo o mundo...e que seria modelo pra Dulcineia, no final épico de meu “rimance” A Engenhosa Tragédia de Dulcineia e Trancoso! A belíssima Pietà com o céu em ouro, de Enguerrand de Charonton. Ô, e a tumba de Napoleão, que me recordou uma cópia sua em ponto bem menor, o panteão de Solano Lopes, no centro de Assunção (que vimos em 76).
Ah, sim, sim, a beleza excepcional de uma infinita coleção de espadas, armaduras e armas de fogo dos séculos XIV e XV! E o espanto de ver rapazes e moças vindos do Musée de l´Armée com o chapéu de Lampião, que logo entendi – caramba, como se parecem – o de Napoleão. Sim: e a Vênus de Milo – que vimos indiferentes! Vários autorretratos de Rembrandt, que me maravilharam pela sensação de ausência de tintas, tudo diretamente feito de sombra e luz! Vários retratos maravilhosos de sorridentes e espontâneos malandros tocando seus alaúdes, de Frans Hals, o que me faz lembrar, agora, do entusiasmadíssimo tocador de concertina debruçando-se da amurada da Pont Neuf pra nós – que passávamos embaixo, no barco descoberto – pelo que foi muito aplaudido. Ô, e a professora, numa sala lotada do Museu da Ciência, em sua aula ante o enorme equipamento que parecia cenário de Flash Gordon ou Metrópolis, fazendo a criançada morrer de rir ao apontar sua varinha mágica pra uma moça cujos vastos cabelos se ouriçaram todos.
E a delícia de comer uma baguete quentinha e de casca crocante, com uma fome enorme? E as grandes esfinges, e os minúsculos Hórus, Ísis, Osiris, e a miniatura de seis mil anos, de barqueiros remando no Nilo? Jamais nos esqueceremos de um maravilhoso trabalho de artesanato, em que vimos, num minuciosíssimo metro quadrado de absoluta exatidão, vários escultores ultimando a cabeça da Liberdade no emaranhado de andaimes de madeira, reproduzindo-lhe a maquete.
Pompidou!
Pós-moderno, escadas todas rolantes, fomos diretos ao teto, com uma das melhores visões da cidade como um todo, e o luxo de termos ao lado, num espelho negro, d´água, a escultura “Capricórnio”, de Max Ernst. E lá estava a Sacré-Coeur no Montmartre, a torre Eiffel, a Notre-Dame, etc, etc, os prédios uniformes lembrando-nos muito os de Buenos Aires, em que – sem poder interferir na arquitetura consagrada - lojas moderníssimas eram incrustadas.
Paris! Como é bom rever, vez em quando, a abertura do filme Meia Noite em Paris, do Woody Allen, e ... conferir na memória – ainda mais prazerosa - dois versos de um poema que eu fizera pouco antes de viajar pra França:
“Melhor que a tela na parede, é a janela.”
C´est vrai. É verdade.
E uma porta.