A Paraíba intelectual, artística, musical, há muito desafia o preconceito, falha de caráter oriunda da superficialidade leviana e da ignorância. O indiscutível valor de notáveis conterrâneos destrói por si só a arrogância dos que insistem em nos menosprezar. Não é à toa que o artista e escritor Waldemar Solha, um paulista bem nordestino, insiste em dizer, vez por outra, que a Paraíba vive surpreendendo-o.
Faz-se completamente desnecessário ressaltar Augusto dos Anjos como um dos responsáveis pelo nível linguístico de repercussão mundial em que se colocou a poesia paraibana.
Igualmente desnecessário lembrar a importância da Biblioteca Mário de Andrade (SP) como eminente acervo de cultura nacional. Além de ser a segunda maior do país, o raro patrimônio e sua programação instrutiva atestam a dimensão de respeitável magnitude.
Pois bem, foi essa instituição que escolheu uma paraibana para prefaciar a edição do Eu de Augusto dos Anjos, em comemoração ao centenário de sua morte. E, mais uma vez, brilhamos lá fora através da abrangência e profundidade da escrita de Ângela Bezerra de Castro, mestra especializada da crítica literária.
O texto é praticamente inédito na Paraíba. Exceto através de alguns poucos exemplares que aqui chegaram e foram distribuídos, à época, inclusive pelas mãos da autora, a alguns privilegiados. (disponível aqui)
Ângela inicia a sua abordagem desmistificando a morbidez tíbia, limitada, superficialmente atribuída à poesia de Augusto. Para ela Augusto é vida. Vida irmanada na visão otimista de uma ressurreição cósmica. Deixa clara na menção a Whitman a suposta afinidade de conexão homem-obra, ainda que na canção do referido o otimismo prepondere com mais nitidez.
Ressalta a preferência da Biblioteca pela originalidade da edição de 1912, para reviver a seleção do próprio autor e evidenciar a simbiose entre obra e criador, fundida em um só fenômeno de absoluta e inédita singularidade.
A premonição de que a concepção ousadamente moderna de sua poesia prenunciaria obstáculos para o predestinado reconhecimento, caso se limitasse à geografia de origem, fez com que Augusto se empenhasse em ultrapassá-la - reforça a ensaísta. Mesmo submetido a dificuldades de toda ordem, o incansável esforço, quiçá corresponsável pela fragilidade de sua saúde e precocidade do desenlace, foi uma obstinação focada em conscientes objetivos. O Eu acima de tudo.
Ângela relembra dizeres de Oiticica, partícipe da intimidade cotidiana de Augusto, ao atribuir influência desta fase árdua e penosa no acintoso desencanto que ele permite revelar no lado "amargurado" de sua poesia. Segundo a professora, esse desgosto se fez marcante também diante da falta de apoio em prol de seu trabalho, por parte das autoridades locais, cuja mediocridade não as permitiu vislumbrar o precioso valor da obra que fulguraria entre as mais eloquentes da língua portuguesa.
A inusitada complexidade da construção augustiniana, como soeu acontecer com grandes artistas e compositores da história, demorou a ser entendida. Como diz Ângela, "o livro pelo qual o poeta sacrificou a própria vida permaneceu algum tempo numa espécie de limbo."
Daí a relevante menção dada por ela à empenhada tarefa de Órris Soares pela ressurreição do Eu, na formatação da segunda edição, em que assinou prefácio e acrescentou novos poemas. Órris vislumbrava em Augusto, sem a menor hesitação, "a riqueza e glória das letras brasileiras", como assegurado na sua contribuição.
E assim, o sucesso deslanchou nas vendas e reedições famosas com fenomenal reconhecimento de púbico e crítica - segundo Ângela -, "sem termos de comparação". Ressalte-se o notável coroamento conferido por Ferreira Gullar, Eduardo Portela e Adolfo Hansen, lembrados no prefácio do centenário.
E o olhar de Ângela manteve-se infalível ao dizer que " Diante do Eu, a morte se desfigura, perde sua força dominante. Resume-se a um episódio, um traço biográfico, uma data. Nada mais". Que profundeza de percepção!
Oportuno concluir frisando que hoje, progressivamente, consolida-se entre estudiosos afinados com o Espiritismo, a noção de carma coletivo contida na poesia do Eu, explicitada na sensação de culpa da humanidade perante sua podridão moral. Porém, invariavelmente sucedida pelo sentimento de transcendência espiritual e fé reluzente no divino universo como a mais sublime criação.