Há mais de 65 anos, meados e final dos anos cinquenta, me vejo ainda hoje mergulhando num cenário infantil da Praça D. Adauto em frente do Palácio do Arcebispo onde reinava D. Moisés Coelho. Na Praça do Bispo, dividida em três seções ajardinadas, eu e um grupo de meninos usávamos intensivamente a primeira fração defronte ao abrigo pastoral de benemerência do Padre Zé Coutinho para nos reunirmos, jogar bola e exercitar nossas habilidades com bolas de gudes. As adquiríamos no Armarinho do mal humorado Seu Viana, na Rua Direita. Éramos muitos, e todos moravam na Visconde Pelotas, Rua Direita, na Conselheiro Henriques, e na Rua Nova, a da Catedral.
Fundaj
Alguns anos depois, pela minha memória rediviva, e a léguas de distância do “maledetto” Alzheimer, minhas lembranças me transportaram até o livro “Os Meninos da Rua Paulo”, do autor Ferenc Mölnár (1878-1952) judeu húngaro de Budapeste que morreu exilado na América.
Caiu em minhas mãos, presenteado pela minha Tia Lucila, da coleção de bolso Bup. No início da minha adolescência os escritos de Mölnar se cristalizaram para sempre com os impressionantes recortes da aguerrida infância daqueles meninos, em especial de: Boka, o general da turma da Rua Paulo; Nemecsek, o único que era soldado raso; e Geréb, o traidor.
Nuno Almeida
A infância incrustada pela fantasia, destemida e dominada pelos sentimentos de coragem, adesão à aventura, ao heroísmo e à amizade, pela obra de Mölnár, varou o tempo, incólume e admirada, aportando-nos a superação do tempo, do localismo, negligenciando totalmente as frações de idades de seus leitores.
Todos nós fomos impregnados pela fantasia com nossas histórias de criança. Em algum momento da vida infantil, fomos também meninos da Rua Paulo. Embora distanciados do mundo adulto, mas, mantendo comportamentos que oscilavam dualmente nos enclaves e imposições comportamentais de adultos e crianças.
Mölnár, em 1907, trouxe à tona o seu livro com um cenário do final do Século 19, fascinando as diferentes gerações e faixas etárias que se seguiram.
O nosso “grund”, era a Praça do Bispo. Que muitas vezes fora ameaçado por uma troupe das ruas do Roger, que nos surpreendiam com invasões no largo externo do Palácio do Bispo. Impediam nossas brincadeiras e massacravam os frondosos jambeiros existentes. Cumpria-nos a defesa do nosso território, mas frequentemente tínhamos que bater em retirada.
Nunca fomos molestados pelos acólitos de D. Moisés, nem por D. Manoel Pereira, que o sucedeu no Arcebispado em 1959. A Igreja Episcopal assimilava bem as nossas diatribes infantis.
A citada obra de Mölnár teve a magistral tradução de Paulo Rónai, que deve ter penado ao se debruçar sobre uma das línguas mais difíceis do mundo, o Magyar, cuja origem remonta às estepes do Cáucaso e que tem um abissal parentesco com as línguas basca, finlandês e o japonês, e que não tem nenhum vocábulo indo-europeu.
Letícia Manosso
Dos dizeres de Nemecsek, me impressionou muito o relato dos seus sentimentos de tristeza quando dizia que “Detestava a fábrica em que o pai trabalhava, que o engolia alegre e repousado, e o expelia ao anoitecer abatido, triste, sujo e cansado.” Acelerou a triste morte do garotinho ao saber, no leito da morte, que “grund” iria sucumbir dando lugar a um edifício.
Em Agosto de 1973, visitando o Leste Europeu, fui até Budapest, bela cidade sombria e soturna, e intempestivamente busquei visitar a Rua dos Meninos. No meio de um profundo desconhecimento da população local, acabei encontrando a Rua Paulo - Pal Útca. Depois fiquei sabendo que na Rua Práter, próxima a Rua Pal, foram assentadas maravilhosas esculturas de bronze dos Meninos da Rua Paulo.
O futebol de rua, as bolas de gude (criadas na Hungria), as disputas de espaços para brincadeiras, as corujas empinadas, a amizade e o respeito mútuo nas evocando as nossas infâncias na Praça do Bispo, nos fizeram também Meninos da Rua Paulo.
Péter Szanyi