Pequenino de tamanho, franzino, fala mansa, mas um gigante do ponto de vista moral e científico. Assim foi – e continua sendo – o professor Natanael Rohr, que nos deixou há poucos dias, vítima de complicações da covid. Até nisso, ele, que sempre foi igualitário, igualou-se a milhares de brasileiros que não resistiram ao vírus. Sua história de vida é notável, mostra como, pelo esforço familiar e pessoal e através do conhecimento, pode-se superar obstáculos e conquistar um lugar digno na sociedade.
Nascido na cidade de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, em família modesta, Natanael teve de desbravar praticamente sozinho sua trilha na selva do mundo sempre hostil aos que não tiveram a sorte de um berço mais aquinhoado. Saiu de sua aldeia ainda jovem para estudar, percorreu caminhos solitários e árduos, até chegar à London University, na Inglaterra, onde doutorou-se em Física, feito extraordinário até para os contemporâneos. Se estudar física em português já é difícil, imagine em inglês! E da Baixada Fluminense a Londres, que vitoriosa caminhada!
Em 1972, veio para a UFPB, onde ocupou inúmeros cargos acadêmicos e administrativos. Foi professor titular no Departamento de Física, Chefe de Departamento, Coordenador de Curso, Pró-reitor e membro dos Conselhos Superiores da instituição, além de presidente da Associação dos Docentes – ADUFPB. Depois, já aposentado da universidade, foi dirigente do SEBRAE/PB e Secretário-Adjunto da Educação na Prefeitura de João Pessoa. Em todos os lugares, deixou a marca da lhaneza e da retidão, emblemas de sua personalidade e do seu caráter admiráveis.
Conheci-o no início dos anos 1990, quando ele coordenou a campanha do professor Neroaldo Pontes à reitoria da UFPB. Ambos vinham de uma atuação operosa à frente da ADUFPB e sempre foram muito ligados. Uma vez eleito, Neroaldo nomeou-o como Pró-reitor de Planejamento e a mim como Procurador-geral da instituição. Passamos então a conviver, profissionalmente, mais de perto, o que me proporcionou a oportunidade de observá-lo e conhecê-lo melhor. Sempre sóbrio, discreto e competente, deu ao reitor, juntamente com o professor Jader Nunes, então Pró-reitor de Administração, a tranquilidade administrativa para gerir a universidade em tempos difíceis, tempos de orçamento curto e de amplas agitações políticas internas, com os sindicatos de professores e de funcionários sempre na oposição e os estudantes sempre insatisfeitos, como é de praxe. Aprendi ali e então a admirá-lo e a respeitá-lo. Era um homem de bem. Sempre fora e sempre seria.
Depois, mais recentemente, reencontrei-o na Confraria de Mirabeau, pequeno grupo que se reúne aos sábados no escritório do professor e empresário Mirabeau Dias, também físico e ex-Pró-reitor de Planejamento da UFPB, como Natanael, para conversar sobre nada e sobre tudo, num saudável e desinteressado diletantismo intelectual, onde eventuais divergências ideológicas jamais atrapalham a convivência harmoniosa e amiga. Esse reencontro serviu para nos reaproximar e para reforçar, em mim, a boa imagem que já tinha formado sobre ele. Era realmente um homem de bem. Sempre fora e sempre seria.
Mais que um militante, parece-me, Natanael foi um idealista, no mais alto e generoso sentido da palavra. Sonhava com um mundo social e economicamente mais justo, com menos autoritarismo, menos desigualdades, menos egoísmo, menos miséria, menos corrupção e menos preconceito, enfim, tudo que pudesse e possa tornar a vida melhor para o maior número de pessoas. Sem esquecer a dimensão ecológica, cada vez mais importante e urgente, num planeta não muito cuidado pela humanidade que o habita. Ele se preocupava com tudo isso, sim, e, quando podia, fazia a sua parte, mas nunca foi um pregador fanático de suas ideias, nunca buscou convencer ninguém, salvo pelo exemplo, nunca rejeitou o convívio – e até a amizade – com os que pensavam diferente. Era generoso e extremamente educado, um verdadeiro lorde inglês, se essa comparação pudesse ser usada para alguém que apreciava a paridade entre os homens e a simplicidade.
Casado com Maria dos Mares, a talentosa artista plástica, formou um casal distintíssimo. Sem filhos, escolheram amigos diletos para, com eles, formar uma família, na base dos afetos verdadeiros. A modéstia, quase monástica, porém elegante, habitou sua casa acolhedora e nela a arte fez despretensiosa morada. Visitei-os algumas vezes, nos idos dos anos 1990, ainda na aprazível casa da beira-mar do Bessa, e, lembro-me perfeitamente, senti naquele lar uma atmosfera de paz e de beleza, quase um claustro, no que este tem de sobriedade e de silêncio.
Em João Pessoa, ergueu a sua tenda e naturalizou-se tão somente pelo afeto, sem necessidade de diplomas e títulos oficiais. Aos poucos, foi conhecendo a terra, sua gente e sua história, tornando-se, ao fim, um grande e amoroso conhecedor das coisas da aldeia. Nas reuniões da Confraria, quando Mirabeau nos brindava com fotografias antigas da cidade ou outras descobertas semelhantes, seu interesse era igual ou superior ao dos confrades nativos. Nisso, era acompanhado pelo professor Modesto Siebra, o cearense mais paraibano que existe. Inconformavam-se, por exemplo, com a ruína de muitos prédios do Varadouro e com o descaso dos governantes por nosso rico patrimônio histórico. Neste ponto, e em outros mais, eram – e continuam sendo - legítimos pessoenses da gema.
Num desses últimos encontros amicais, anunciou, jubiloso, que pretendia dedicar o mês de julho a uma viagem com Maria, se não me engano a Brasília, onde visitaria familiares dela, que a afetividade também fizera seus. Estava aparentemente bem e feliz. Entretanto, quis o Pai, o destino ou o acaso que tudo fosse diferente. Que podemos nós, pobres mortais conhecedores de nossas precariedade e finitude, fazer ou dizer, senão aceitarmos a fatalidade, sem renúncia do sentimento de perda e da tristeza por sua ausência?
A súbita partida de Natanael talvez venha a ter discreta repercussão oficial. Não me surpreenderá se a UFPB, onde prestou tantos e relevantes serviços, o SEBRAE/PB e a Prefeitura Municipal não se manifestarem na medida e na forma devidas. O mundo é assim e nós sabemos. Cultua-se apenas os poderosos do dia. Tomara que me engane. Mas se a omissão institucional prevalecer, conforta-nos saber que tudo acabará sendo exatamente do jeito que ele preferiria, ele que nunca buscou protagonismos, que jamais fez questão de subir ao palco, e que, da plateia, sempre soube fazer, para melhor, a diferença que marcou sua passagem entre nós.
Nas futuras reuniões da Confraria, seu lugar de costume nunca estará vazio. Sua presença inesquecível continuará lá, de alguma maneira enriquecendo, como sempre fez, seus amigos saudosos e fiéis.