Aos meus ex-alunos, hoje, professores, com os quais aprendi, ao ensinar.
A leitura dos detalhes é essencial. Não se faz análise com leituras apressadas e visões generalizantes. Uma palavra deixada para trás, muitas vezes, é a chave de que precisávamos para abrir a porta do enigma, como diria o poeta Drummond. Pensando nessa lição, que repito incansavelmente, como um mantra, aos meus alunos, é que resolvi fazer a leitura de um pequeno trecho de Os sertões, de Euclides da Cunha, pertencente ao Capítulo VI, da parte II de “A Luta” — Travessia do Cambaio, extraído da edição crítica
de Walnice Nogueira Galvão (Ubu Editora/SESC São Paulo, 2019, p. 266-267):
“Muito baixo no horizonte, o Sol descia vagarosamente, tangenciando com o limbo rutilante o extremo das chapadas remotas, e o seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que já se adunavam nas baixadas, caía sobre o dorso da montanha... Aclarou-o por momentos. Iluminou, fugaz, o préstito que seguia à cadência das rezas. Deslizou, insensivelmente, subindo, à medida que lentamente ascendiam as sombras, até ao alto, onde os seus últimos raios cintilaram nos píncaros altaneiros. Estes fulguravam por instantes, como enormes círios, prestes acesos, prestes apagados, bruxuleando na meia-luz do crepúsculo.
Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandecente de Órion alevantava-se sobre os sertões...”
Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandecente de Órion alevantava-se sobre os sertões...”
Destacado do seu contexto, o trecho é inegavelmente de caráter literário, pelo estilo, de que se destaca a animização da natureza, fugindo da objetividade que se deveria esperar de uma narrativa que tem como propósito fazer um relato sobre a guerra de Canudos. Sabe-se que Euclides foi para Canudos, em 1897, designado pelo jornal O Estado de S. Paulo, para cobrir, como correspondente, a quarta expedição contra o arraial de Antônio Conselheiro. A intenção, portanto, era a de produzir uma reportagem sobre o fato. Depois de reconhecer a situação de ignorância e miséria, engendradoras do misticismo fanático, é que o texto, maturado por cinco anos, se tornaria no mais grandioso livro de nossas letras. Ainda que o objetivo de Os sertões não seja fazer a literatura ficcional, Euclides da Cunha, grande leitor e de uma cultura vasta, não abriu mão do estilo literário, como se pode comprovar no texto acima.
O melhor, contudo, desse trecho é o último parágrafo, com apenas dois curtos períodos, pela riqueza de informações que dele podemos extrair. Chamamos, desde já, a atenção para o uso de “alevantava-se”, em lugar de “levantava-se”, mais utilizado atualmente, que não esconde a preferência de Euclides pelo estilo camoniano, conforme se vê nos últimos dois versos da terceira estrofe do Canto I de Os Lusíadas:
Cesse tudo que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
O melhor está por vir. Ao se referir à constelação de Órion, que surge com as primeiras estrelas, à “meia-luz do crepúsculo” sertanejo, Euclides da Cunha nos diz da época e da estação do ano, e da posição geográfica em que se situa o narrador, ao contemplar o céu. Sabe-se que a constelação de Órion surge, clara, no céu do crepúsculo, no final de dezembro e início de janeiro, marcando, portanto, o verão. Se o leitor quiser tirar a dúvida da época e da estação é só adiantar a leitura e encontrará na terceira parte de “A Luta” – Expedição Moreira César –, Capítulo I, a informação de que o referido coronel aceitou o convite para chefiar a nova expedição a Canudos, depois do insucesso do major Febrônio de Brito, e “seguiu a 3 de fevereiro para a Bahia” (p. 280). Esta data nos revela que o convite foi feito ainda em janeiro de 1897, o que confirma a estação e a visão de Órion, já percebida durante o lusco-fusco.
Se o leitor recuar na leitura e for para a segunda parte – Travessia do Cambaio –, verá que já no Capítulo I, a informação é de que “no dia 29 de dezembro entraram os expedicionários em Monte Santo” (p. 237). Mais adiante, no Capítulo II, Euclides fala das “condições desfavoráveis” das tropas, “que partiram a 12 de janeiro de 1897” (p. 247), porque “a certeza do sucesso imobilizou” a tropa por “quinze dias em Monte Santo” (p. 243). As datas batem perfeitamente com o surgimento de Órion, na hora especificada por Euclides da Cunha. Contudo, reafirmamos que, mesmo se o texto for tomado isoladamente do seu contexto, essa informação estará ao alcance do conhecimento de quem tem uma noção básica de astronomia.
Há ainda outra informação importante, que este pequeno parágrafo nos traz. Se o narrador está vendo o surgimento de Órion, no final da tarde, início da noite, é porque a sua posição é de frente para o leste, tendo em vista que esta constelação surge naquele ponto cardeal, a partir daquela hora, mostrando-se a partir da resplandescência de sua estrela alfa, Betelgeuse, a primeira a aparecer, com a sua cor levemente alaranjada. É interessante, então, observar que todo o esforço do autor é nos levar até Canudos, preparando com cuidado o ambiente (Parte I – “A Terra”) e o seu habitante (Parte II – “O Homem”), de modo a mostrar a simbiose entre esses dois elementos, por ocasião da guerra (Parte III – “A Luta”). No momento em que Euclides nos apresenta este texto, ele, como narrador, está, incontestavelmente, fitando o leste e de costas para Canudos, que se situa a oeste. É como se, mesmo passado o cruel e inaceitável desfecho, ele, Euclides, na sua compreensão humanística de que a solução para aquele problema não deveria ter sido violenta, virou as costas à situação, poetizou o sol poente e acreditou na esperança de uma solução que pudesse ser de outra maneira.
A referência a Órion não é, contudo, simplesmente astronômica, geográfica ou sazonal. É também sobre morte. Órion era, na mitologia, um caçador. E a caçada já começara, na vitória de Pirro, no Cambaio, e no fracasso da segunda expedição, no conflito de Tabuleirinhos, de onde a tropa vive a degradação: exausta, vencida, esfomeada e correndo atrás de um bando de cabras para matar a fome (Parte II – Travessia do Cambaio –, Capítulo V, p. 265):
“e, uma hora depois, acocorados em torno das fogueiras, dilacerando carnes apenas sapecadas – andrajosos, imundos, repugnantes –, agrupavam-se, tintos pelos clarões dos braseiros, os heróis infelizes, como um bando de canibais famulentos em repasto bárbaro...
[...]
Cobertos de chapéus de palha grosseiros, fardas em trapos, alguns tragicamente ridículos mal velando a nudez com os capotes em pedaços, mal alinhando-se em simulacro de formatura, entraram pelo arraial lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis bravios, fugindo à desolação e à miséria.
A população recebeu-os em silêncio”.
Cobertos de chapéus de palha grosseiros, fardas em trapos, alguns tragicamente ridículos mal velando a nudez com os capotes em pedaços, mal alinhando-se em simulacro de formatura, entraram pelo arraial lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis bravios, fugindo à desolação e à miséria.
A população recebeu-os em silêncio”.
E a caçada continuará com o fragoroso fracasso da expedição Moreira César, cuja tropa, em fuga, após a morte de seu comandante, debandara e deixara no campo de batalha armas, munições e tudo o que os atrapalhava, atrasava ou denunciava, como as roupas – “dólmãs e calças de listra carmesim, cujos vivos denunciadores demais no pardo da caatinga os tornavam incompatíveis com a fuga. De sorte que a maior parte da tropa não se desarmara apenas diante do adversário. Despira-se...” (Parte III – Expedição Moreira César –, Capítulo VI, p. 324).
Não é à toa que um dos epítetos de Canudos era “cidadela-mundéu”: a um só tempo, fortaleza e armadilha de caça, cujos combatentes, os jagunços, haviam adotado uma “prática venatória” (Capítulo IV, p. 308).
Órion alevantava-se sobre os sertões...