Trier é uma das cidades mais antigas da Alemanha. Em tempos remotos, chegou a ser uma das sedes do Império Romano. No final do século 18, a região foi ocupada, durante 16 anos, pela França. Foi em Trier que nasceu Santo Ambrósio, que é considerado um dos primeiros Doutores da Igreja Ocidental (ao lado de Agostinho, Jerônimo e Gregório). Ambrósio foi o filósofo que, segundo Bertrand Russel, estabeleceu as bases das relações entre o Estado e a Igreja.
Trier também é a terra natal de outro importante filósofo, cuja silhueta decora as placas de sinalização do trânsito e os semáforos na área central da cidade. A estampa desse filósofo é reconhecível em qualquer parte do mundo, como se fosse um conhecidíssimo artista popular de fama internacional e, em Trier, a sua figura é colocada nos mais improváveis lugares e nos formatos mais diversos, como nas placas de estabelecimentos comerciais e nos ônibus "sigthseeing" que circulam nos pontos turísticos da cidade.
Mas nem sempre foi assim. Quando Karl Marx, o mais destacado filho de Trier, morreu (em 1883), apenas onze pessoas estiveram presentes no seu enterro, no Cemitério de Highgate, em Londres. O seu falecimento mal foi noticiado na imprensa da Inglaterra, país onde ele viveu por mais da metade da sua vida. A sua presença obscura em Londres levou um jornal britânico a publicar que ele havia morrido na França.
O historiador Eric Hobsbawm, na obra “Como Mudar o Mundo – Marx e Marxismo”, relata um fato interessante que demonstra a mudança na posição que Marx ocupava no ambiente intelectual na época do seu falecimento e a influência que as suas ideias exercem, atualmente, em todo o mundo:
“No cemitério Highgate estão sepultados dois pensadores do século XIX – Karl Marx e Herbert Spencer – e, curiosamente, da tumba de um se avista a do outro. Quando ambos eram vivos, Herbert era considerado o Aristóteles da época, enquanto Karl era um sujeito que morava nas ladeiras mais baixas de Hampstead à custa do dinheiro do amigo. Hoje, ninguém sequer sabe que Spencer está sepultado ali, enquanto peregrinos idosos, vindos do Japão e da Índia, visitam o túmulo de Karl Marx, e comunistas exilados iranianos e iraquianos fazem questão de ser enterrados à sua sombra”
Karl Marx nunca participou de motins ou barricadas em revoltas armadas. Tampouco era um orador brilhante que empolgava as pequenas plateias para as quais discursava. Por isso, se a sua influência no pensamento universal permanece praticamente inalterada passados quase 140 anos da sua morte, a razão se deve, unicamente, aos seus escritos. E, vale ressaltar, que “O Capital”, a principal obra de Marx, não é um texto de leitura fácil. Na verdade, muitos dos que se dizem seguidores das ideias do pensador alemão, e também a grande maioria dos seus detratores, não chegaram a ler integralmente, ou, se o fizeram, não conseguiram atravessar, com a devida compreensão, as páginas daquele intrincado e volumoso tratado de economia política. A dificuldade na leitura de “O Capital” pode ser constatada
pelos incontáveis manuais de apoio à leitura da obra, do tipo “Para entender O Capital”, editados com certa frequência.Hobsbawm, um dos principais comentadores do pensamento de Marx, autor de uma alentada “História do Marxismo”, ressalta:
“Não se pode dizer que ao morrer, em 1883, Marx tivesse propriamente fracassado, pois seus textos tinham começado a causar impacto na Alemanha e, principalmente, sobre intelectuais na Rússia. Entretanto, em 1883, havia pouca coisa que justificasse o trabalho de toda a sua vida. Marx havia escrito alguns panfletos brilhantes e a base de sua obra magna, inacabada, ‘O Capital’, trabalho que pouco avançou na última década de vida do autor. ‘Que obras?’, retrucou ele, acabrunhado, quando um visitante lhe perguntou sobre as suas obras.”
Com a queda do Muro de Berlim e o esfacelamento dos regimes do chamado bloco socialista do leste europeu, muitos dos que se opunham ao pensamento de Marx apregoaram que, em muito pouco tempo, as ideias do filósofo alemão seriam sepultadas pela poeira do tempo e esquecidas. Mas não foi o que ocorreu. E dois escritores marxistas, separados por gerações, têm opiniões mais ou menos congruentes acerca do que aconteceu com a revitalização do pensamento de Karl Marx após o desmantelamento dos regimes comunistas na Europa.
Para o falecido historiador britânico Eric Hobsbawm:
“o fim do marxismo oficial na União Soviética liberou Marx da identificação pública com o leninismo na teoria e com os regimes leninistas na prática. Ficou claríssimo que havia ainda muitas e boas razões para se levar em conta o que Marx tinha a dizer sobre o mundo”.
O jovem filósofo marxista italiano Marcello Musto vai na mesma linha interpretativa de Hobsbawm:
“Após a implosão da União Soviética, o cenário político também contribuiu para renovar a percepção a respeito dele. Com o fim do marxismo-leninismo, ele foi liberado, de fato, das correntes de uma ideologia infinitamente distante de sua concepção de sociedade”.
Na última década, com a crise no capitalismo mundial iniciada em 2008, o nome de Karl Marx voltou a ter um renovado destaque. E, à medida que se agrava a disparidade na distribuição da renda entre as regiões e as pessoas no mundo, o pensamento do filósofo de Trier se torna cada vez mais atual porque, como escreveu Hobsbawm:
“O mundo capitalista globalizado que surgiu na década de 1990 exibia, em vários aspectos vitais, uma estranha semelhança com o mundo previsto por Marx no ‘Manifesto Comunista’”.