João Manoel não conversava detidamente comigo há mais de vinte anos. Numa das últimas reformas gráficas com que tentou renovar e manter o semanário “Contraponto”, lembrou-se do antigo gráfico que eu fui. Fiz-lhe ver que pouco, muito pouco podia ajudar, inabilitado por completo pela mudança radical de técnicas e sistemas trazidos pela informática. E naquele reencontro de falas e olhares, por não mais que alguns minutos, contivemos, mudos, o desabafo de mútuas e profundas afinidades de leitura e de comportamento humano, social e político enraizadas para toda a vida.
Pouco depois o vi curvado sobre as teclas dum caixa eletrônico, mas tão absorto, tão parecido ou recordado com o companheiro que se debruçava inteiro sobre a Remington da antiga redação de O Norte, onde nos fizemos, que preferi não atrapalhar.
Como sabem os pouquíssimos remanescentes da nossa geração, fomos amigos, confrades, lutadores com uma afinidade nascida nos calorosos anos de formação intelectual e política. Uma afinidade que se disseminou pelas fibras do nosso caráter e para sempre.
Acredito que chegamos a ser irmãos, pela semelhança de fé religiosa de nossas mães (D. Nina, aqui na Rua São José, e D. Antonina na freguesia de Alagoa Nova), pela iniciação no espírito público de que o jornal foi instrumento; pela leitura do mundo e, no principal, pela divisão dos pães. Se não irmãos, compadres: minha primeira filha Graciele foi e continua sendo por toda vida sua afilhada.
Mas eis que se interpôs, entre nós, um hiato de comunhão a pouco e pouco distanciada. No essencial nada mudou. A não ser numa circunstância extremamente particular: na nossa idade, para além dos 80, já não temos com quem partilhar. Eu, que sempre dependi da leitura mútua, compartilhada, de início com um preceptor como Geraldo Sobral de Lima, a quem vem se juntar, em sequência, Adalberto Barreto, João Manoel, seu primo Janiro Pontes, viventes solidários dos acontecimentos e de sua repercussão no nosso meio.
Mas não é só... Morre o homem, a incineração num instante o reduz a pó, mas se é humano...
Há quase sessenta anos, João Manoel me encontra saindo da Previdência onde fora requerer meu auxílio-doença, era este o nome do benefício. O sanatório me liberara na condição de não ir em casa, não abraçar, não apertar mãos nem me servir em nenhum café ou restaurante. O bacilo da tuberculose resistia, o exame não negativara. Nem o copo plástico estava em uso.
“Você vai almoçar comigo e Socorro”.
Por mais que lhe falasse na minha condição, no perigo do contágio, mais ele forçava-me pelo braço. Pôs-me em seu jipe, daí em sua mesa, o gesto sobrepondo-se ao tempo e a tudo mais que venha compor a nossa biografia.