Quando estamos inertes, sentados ou deitados, contemplando ou dormindo, há uma sensação de estática que é a mais pura ilusão. Pura porque inocente, ou por esquecermos de que tudo no Universo está em constante movimentação. Quem vai lembrar ou imaginar que, mesmo parados, acordados ou imersos em sonhos, estamos viajando em círculos, a quase dois mil quilômetros por hora?...
A vida é toda movimento. Um permanente bailado que se contrapõe e justapõe em vários planos. Da atmosfera às profundezas marinhas, os caminhos e atividades intrinsecamente se entrelaçam desde que o planeta se formou, há bilhões de anos, e continua evoluindo, alternando-se em eras de frio e calor.
Aquém da dança das galáxias, estão os nossos movimentos individuais, produzidos pelos comandos da mente. Dinâmica presente em nós desde que abrimos os olhos à jornada terrena, que nos confere individualidade e liberdade para se mover.
Vem das mais remotas eras o desejo nato de nos expressarmos de algum modo, bem antes das falas e letras. A vontade de transmitir o que pensamos, tememos, amamos, rejeitamos parece ter nascido quando aqui surgimos. Os movimentos são os meios pioneiros de comunicação. Quem sabe não foram o ritmo do som dos mares, da chuva a pingar, do vento a farfalhar, e até do nosso próprio caminhar, o que nos inspirou a dançar, e depois falar?... E quando tudo se misturou, a vida se fez drama de palco, ainda sem teto e sem luz.
Do som que se descobriu nos pés, da força e graça do pisar, nasceu a dança, uma das mais antigas expressões humanas, registrada há cerca de 10 mil anos em arte primitiva rupestre.
Dançava-se pela alegria de viver, pela natureza, pelos medos e desejos, pela força e pela fé. Em rituais de múltiplos propósitos, dos místicos aos bélicos, dos profanos aos sagrados, o homem se comunicou através do movimento corporal, individual e coletivo, elegendo a dança como primeiros reflexos do eu artístico.
Era após era, a linguagem corporal evoluiu de várias formas, livres, espontâneas, improvisadas ou coreografadas, integrando-se diversificadamente à história das civilizações, da Mesopotâmia aos persas, dos egípcios aos gregos, entre atletas e guerreiros, do culto à perfeição do corpo à preparação para as lutas.
Sócrates atribuiu à dança a capacidade de nos tornar um ser completo, conferindo-nos proporções corretas à postura corporal, saúde integral e induzindo-nos a reflexões estéticas e filosóficas. Os gregos não concebiam o corpo separado da mente, e acreditavam que o equilíbrio entre eles trazia sabedoria e conhecimento. Por isso introduziram-na processos de educação.
Na dramaturgia grega, a dança desempenhou função primordial no importante papel do coro, e reforçou o teatro com canto e declamação sob forte componente rítmico, tão essencial como os atores. Realizava-se a mimesis por meio da qual tudo era representado em movimentos para definir as coisas, os seres, os sentimentos.
Após o declínio imposto pela rigidez religiosa da Idade Média, a dança passou a ser considerada mero culto ao corpo, e portanto expressão profana, quedando-se quase esquecida, restrita a manifestações campestres. Mas em seguida, no Renascimento, retorna com timbre de nobreza, em caráter mais refinado, na forma do que viria a ser classificado como balé. Prossegue auferindo estilo, disciplina, abraça enredos, romance, poesia, e no século XVI se espalha pela Europa ocupando palcos em espetáculos cada vez mais bem elaborados. No século XVII, ampliou-se em dramas e pantominas, enriquecendo-se com coreografia, cenografia, orquestra, corais e muita música, para atingir fulgurante esplendor no século seguinte.
No século XVIII, a dança atrai Jean-Jacques Rousseau que nela enxerga possibilidades por meio das quais o homem ultrapasse o solipsismo, o egoísmo pragmático, inclinando-se ao sentido de coletividade. Rousseau também acredita que a educação pode se beneficiar de sua força, extrapolando-se do balé a festas populares, utilizando sensações do tato, do movimento do corpo, na busca da liberdade de expressão em linguagem afinada com sua revolucionária filosofia iluminista.
No século XIX, o dançar implementa-se de profissionalismo, técnicas modernas, sapatilhas específicas e se torna ainda mais livre, tanto em concepção como na interação com a realidade humana, a vida cotidiana e as culturas do mundo. A influência de personagens como Serguei Diaguilev, Isadora Duncan, seguidos de Martha Grahan e Vaslav Nijinski conferiram ao balé grandiosidade e reputação internacionais em produções cada vez mais apuradas, formal e esteticamente, com imponentes cenários, sagas, dramas, música sinfônica e muita arte.
A partir de 1850, o interesse pela arte da dança se aprofundou em estudos e experiências sobre o grande poder de influenciar a educação musical. Pesquisadores, filósofos, compositores, professores de arte sentiram-se atraídos pelos efeitos que a simbiose entre a música e a dança pode em nós produzir. Na segunda metade do século, o pedagogo francês François Delsarte lança um novo olhar para a expressão corporal, em que identifica dimensão ainda maior, mais espiritual, estética e metafísica. O fazer artístico não podia ser dissociado do gestual, da linguagem do corpo.
Delsarte passou a influenciar os conceitos de educação de sua época como um processo unido às descobertas do poder do próprio corpo rumo à conquista da consciência plena e desenvolveu importantes pesquisas. Seu trabalho foi acatado por expoentes da música e do balé, como o notável cantor lírico francês Alfred-Auguste Giraudet, consagrado pela crítica nas diversas performances em que atuou como Méphistophélès, no Fausto de Charles Gounod, eminente professor de canto no Conservatório de Paris por 15 anos, e na Juilliard School, quando passou a residir em Nova York, no início do século 20, já apontado como grande precursor da coreografia moderna.
A essa altura, uma consistente linha de pensamento se formava entre professores de canto, dança e música convergindo para a intrínseca e indissociável relação entre as formas artísticas da linguagem. Estava em curso uma revolução pedagógica, pavimentando novos caminhos para o ensino da arte.
Uma nova concepção metodológica, algo realmente inovador, brotava na educação musical ampliando sua importância no aprendizado da própria vida. A educação para a música, pela música, com a música. Longe de ser por meio da tradicional transmissão passiva de noções técnicas, teóricas, estéticas, tão arraigada ao convencional exercício do magistério em todas as áreas.
É no trabalho de Émile Jaques-Dalcroze que o ensino da música se associa aos ritmos e movimentos do corpo, consolida o elo com a dinâmica corporal, com o caminhar, o existir, redescobrindo e reforçando a noção sobre a importância do equilíbrio das forças atuantes no corpo humano. Afinal, Platão já dizia: “toda a vida necessita de um ritmo correto”.
Dalcroze despertou para a música desde os 6 anos, quando começou a estudar piano e a compor. Nascido em Viena (1865), filho de pais suíços, voltou com a família para Genebra e continuou seus estudos no Conservatório da capital até os 18 anos, quando se diplomou.
Entusiasmado, rumou para Paris onde estudou com os mestres e compositores Gabriel Fauré, Vincent d’Indy, e destacou-se como pianista em apresentações públicas, sobretudo pela capacidade de improvisar. E lá desenvolveu interesse pela dramaturgia.
Em 1886, recebe convite para regente adjunto do maestro Ernst Adler em uma orquestra de teatro do gênero Vaudeville, na Argélia, e logo é contratado para diretor do Conservatório de Música de Argel. Mas a vontade de se aprofundar o leva, no ano seguinte, para a Academia de Música de Viena, cidade considerada “capital da música” durante todo o século 19, título que mantém até hoje. Foi lá que ele estudou com Anton Bruckner.
Foi justamente a experiência do aprendizado em Viena que lhe despertou inconformismo com os métodos tradicionais de ensino, um tanto frios para acolher, explicar e desenvolver o sentimento que o arrebatava ao ouvir uma sinfonia, intuindo que ele, assim como os colegas, necessitavam de algo a mais do que os professores lhe ensinavam.
Após o período em Viena, Dalcroze passou três anos estudando em Paris, com Mattis Lussy, escritor e pedagogo suíço especializado em teorias sobre a expressividade da performance artística que enxergava dentro do ritmo das estruturas musicais, e não apenas nas fontes sensoriais de inspiração.
Émile Dalcroze é então convidado para ensinar no Conservatório de Genebra em 1892, dessa vez como professor de História da Música, harmonia e solfejo avançado. Em seguida, foi contratado para tratar de uma reforma do ensino público na Suíça. A experiência reitera nele a percepção de que os músicos ali formados teriam o potencial mais amplamente explorado caso ultrapassassem os ditames impostos pelos rigores do ensino convencional. A música, o ritmo, a composição deveriam se irradiar cinestesicamente dos ouvidos para todo o corpo, sem nos manter inertes, passivos, mas em comunhão integral com as emoções.
Como cultor das artes, sua observação caminhou pelas experiências de teatro e balé, das quais novas descobertas da psicopedagogia estimulavam a rejeição ao formato estático do ensino. Correntes paralelas ganhavam notoriedade e fortaleciam a necessidade de rever os processos educativos, a exemplo do grande impulso dado por seu contemporâneo, o escritor e filósofo esoterista austríaco, Rudolf Steiner, que fortaleceu o pensamento direcionado à visão holística do aprendizado e da experiência humana. Além de fundar a Antroposofia, Steiner criou, junto com sua esposa, Marie Steiner-von Sivers, a “Euritmia” — abordagem da dança como busca de plenitude interior capaz de integrar a liberdade coreográfica, o espaço cênico, o ritmo, a linguagem poética, a fala e os sons em toda sua complexidade de comoção e expressão.
Tudo apontava para a revolucionária guinada que a pedagogia daria naquele início de século, à procura da “musicalização do corpo” em total cinestesia, corrigindo a passividade do aluno de então, antevista como um entrave para a percepção integral dos saberes. Percepção que deveria ser uma experiência única, individual e ao mesmo tempo ampla e coletiva. Música, corpo e alma uniam-se para romper a dicotomia artística e serem captados na vivência dinâmica, na escuta plenamente ativa.
No contexto em que despontavam novas luzes para a experiência musical, Émile Jaques-Dalcroze merece os louros da conquista que resultou em vários tentáculos condutores da ousada didática. Rapidamente seu método se difundiu com adeptos da disciplina que veio a se chamar a “Rítimica Dalcroze”, cujo objetivo era fazer o aluno sentir a fusão entre música e gesto, experimentando brotar de dentro de si toda a sensação de uma nova liberdade catártica participativa.
Após deixar a direção do Conservatório de Genebra, Dalcroze decide estabelecer sua própria escola em Hellerau, perto de Dresden, em um local aprazível que ficou conhecido como Cidade-Jardim. Atraiu expoentes do balé moderno do século, que para lá foram estudar, fazendo a escola crescer e ganhar fama progressivamente. Em 1911, o professor Dalcroze foi convidado pelo príncipe Sergei Volkonsky, membro do movimento de oposição à servidão e à autocracia russa, conhecedor e entusiasmado com a Euritmia, para apresentações de seus alunos em São Petersburgo e Moscou.
A dança prosseguia despertando potenciais associados à compreensão e ao aprendizado musical, ainda não explorados. O êxito que se verificava na rápida resposta de crianças, adultos e idosos surpreendia. Conservatórios, escolas, academias, teatros e universidades dirigiram crescente atenção para o trabalho de Dalcroze, que retorna a Genebra para fundar o Instituto Émile Jaques-Dalcroze, até hoje respeitado centro de educação de professores que se mantêm fiel à sua ideia.
Pedagogos, instrumentistas, professores de música, rítmica, solfejo, teatro, profissionais da psicoterapia, psicomotricidade, foram e ainda permanecem mundialmente convictos da eficácia e da importância do “Método Dalcroze”, que se inseriu nos currículos de bacharelados, mestrados e doutorados em Música. Várias teses se aprofundaram e enriqueceram a obra dalcroziana identificando na didática rítmica um princípio formativo evidenciado no axioma do fundador da Rítmica: “Música é movimento, e movimento é música”. Um sentido que reverbera na indissociabilidade entre o andamento “musical” e seus reflexos em nosso corpo, algo imanente à humanidade. Promissoramente os estudos descobriram, como dantes já se supunha, as virtudes e dádivas em prol do desenvolvimento pessoal e coletivo, físico e psíquico do ser humano que juntos permitem-no usufruir a prática da liberdade corporal em toda expressividade possível, livre dos tabus e limites das escolas tradicionais.
Vem daí o que hoje se entende como linguagem corporal, cada vez mais presente na produção artística de vários segmentos, não apenas pertinentes à Música em si, mas em todo o universo que se beneficia irrestritamente do milenar significado dos sons. Óperas, balés, concertos, dramas, pompas, cultos, rituais, saraus, ginástica rítmica, atividades esportivas, de todos os estilos e concepções, abraçaram os conceitos de Dalcroze, empírica ou cientificamente. Um nome que se expandiu em uma capilaridade imensamente diversificada e pouco vista entre os compositores de música erudita.
Além da grande quantidade de instituições de ensino de vários graus, que foram criadas pelo mundo adotando o Método Dalcroze, sucedem-se congressos, seminários, grupos de estudo e pesquisa que consolidam a obra do educador e compositor austro-suíço. Inclusive a instituição Hellerau, construída em Dresden, em 1911, para funcionar como sala de festivais e entidades para ensino de música e ritmo, exatamente de acordo com as visões do professor Émile Jaques-Dalcroze, que lá implantou a nova metodologia dedicando-se por quase quatro anos. Durante sua permanência aconteceram 3 festivais que revolucionaram conceitualmente a prática musical com tremenda repercussão internacional, tidos como realizações das mais instigantes da história da dramaturgia, agora revestida com nova linguagem cênica e conceitual.
A afluência de notáveis à plateia dos festivais de Hellerau foi histórica, com a presença de nomes como Rachmaninoff, Stanislavski, Diaghilev, Nijinski, Anna Pavlova, o príncipe Wolkonski, Bernard Shaw, Max Reinhardt, Paul Claudel, Ernerst Bloch e Le Corbusier. Todos encantados diante das inovações como a que foi concebida com 250 pessoas a ritmar o Prelúdio e Fuga de Mendelssohn; a apresentação de “Eco e Narciso” — uma cantata-pantomima escrita por Dalcroze para orquestra, coral, solistas e ritmistas —; e a ópera “Orfeu e Eurídice”, de Gluck, montada em cenário de grandes escadarias nos palcos de Hellerau, coreografada por Annie Beck, logo aclamada como uma sublime encenação da ópera até então.
Todos os espaços foram invadidos por uma legião de intelectuais, artistas e jornalistas do mundo inteiro, com público superior a 5 mil pessoas. Com a Primeira Guerra Mundial, as atividades da Hellerau foram brutalmente suspensas, e Dalcroze retornou a Genebra, para lá não mais voltar.
Algum tempo depois, a escola voltou a funcionar, e até hoje mantém-se entre os conceituados centros internacionais de artes contemporâneas e laboratório de modernismo artístico na Alemanha e em toda Europa, sempre referenciado pelos nomes, aqui já mencionados, que lá deixaram sua marca como o poeta Paul Claudel, o dramaturgo e jornalista Bernard Shaw, o coreógrafo russo Serguei Diaghilev, o bailarino e coreógrafo Nijinski, e Max Reinhard, um dos grandes diretores teatrais do século XX.
Os ensinamentos de Émile Dalcroze continuaram a se expandir mundialmente até os dias atuais. Há 10 anos, foi criada a “Conferência Internacional de Estudos Dalcroze” , que acontece anualmente em vários países como Áustria, Suíça, Polônia, Estados Unidos e Alemanha, com apoio da “Fondation Emile-Jacques Dalcroze” e da “Association des Amis de Jacques-Dalcroze”. O professor e musicoterapeuta John Habron, PhD e titular de Música, Saúde e Bem-estar do Royal Northern College of Music, em Manchester, que preside o Comitê Científico organizador da conferência, escreveu importantes trabalhos sobre como o Método Dalcroze e a Euritmia podem contribuir para as psicoterapias modernas, que incluem a atividade musical, inclusive em hospitais pediátricos.
O respeitado teólogo, filósofo e escritor britânico John W. Harvey, chegou a identificar em Dalcroze não apenas “um mero refinamento de dança, nem um método aperfeiçoado de ensino de música, mas um princípio de espiritualidade que tem efeito sobre todos os aspectos da vida".
Entretanto, a Euritmia é apenas uma parte do trabalho de Émile Jaques-Dalcroze, ao qual ele tanto se empenhou didaticamente. Sua obra como compositor, não tão conhecida e nem presente internacionalmente nos repertórios e palcos de concertos, é de uma vastidão impressionante. Em sua música, a alma dança com corpo e coração em diversos níveis e gêneros. Foi investigada, bem tratada, testada e escrita em quase todos os estilos, sob extraordinário senso de ritmo e dom melódico, esteticamente ligada à escola francesa e com nítida influência do romantismo germânico. Do espírito mais jocoso e infantil ao poético e dramático, da complexa técnica contrapontística ao romantismo pungente, passando pelo trágico, impressionista, moderno, Dalcroze foi um mestre admirável. Nas consonâncias e dissonâncias, expressionistas e impressionistas, tudo se estrutura em modulações e rítmicas magistrais. Ora resgata Fauré, ora Cesar Franck, perpassando pelos românticos e pós-românticos com total domínio.
Nas peças corais atingiu perfeição lírica e estendeu os encantos de suas melodias às vozes de instrumentos de vários naipes, cordas ou sopros. Sua obra abrange diversas formas de composição. Concertos, peças sinfônicas, música de câmara (duos, trios, quartetos), suítes, poemas, aberturas, música descritiva, canto, cantatas, pantominas, danças, muitas obras pianísticas como baladas, estudos, barcarolas, improvisos, caprichos, fugas, variações, suítes de balé, rondós, humoresques e grande variedade de canções, muitas delas com caráter e vozes infantis.
A vastidão do pensamento dalcroziano dificilmente caberia em apenas um texto, em que aqui tento abordar . Sua mensagem repercutiu arrebatadoramente em canais tão diversos que seu trabalho como pedagogo talvez seja mais conhecido do que a obra musical, conquanto as aplicações práticas na evolução da Rítmica muito tenham crescido e continuam proliferando nos tempos atuais. Ainda que não se possa dissociar a essência de suas composições das ideias que sugerem, pois a expressão corporal está associada à sua música, de maneira técnica e emocionalmente intrínseca.
Há também uma forte reverência de Dalcroze à paisagem , com as belezas naturais, tematizadas e evidenciadas no amor telúrico à terra natal, a Suíça, patenteado em várias obras. Como se a natureza, o campo, os lagos, as montanhas compusessem a ideia de que tudo é dança e pode ser retratado em música. A suíte orquestral “A Suíça é bela”, o “Poema Alpestre” , as “13 pequenas variações sobre “A Suíça é bela”, os Tableaux Romands “O Lago”, “Os Alpes”, “Um campanário ao longe”, são autênticos rompantes de amor pela Natureza e às cenas cotidianas .
A paixão dramática e o eloquente romantismo estão magistralmente inscritos nas obras orquestrais, “Trabalho”, “Janie” e “Impressões Trágicas”, esta última retratando sua mágoa pela guerra e terríveis consequências. Em “Trabalho” (Travail), Dalcroze esculpe grande homenagem à importância da força do trabalho, desde a dureza dos esforços aos gloriosos resultados e conquistas, culminando com emocionante plenitude de suas realizações, pessoais e coletivas.
A poesia levita da paisagem e se deita na cena humana em comoventes páginas como em “À janela” , “Os velhos dançam”, “A floresta fala” e “Duendes”, da Suíte Pastoral para Orquestra.
No gênero melodrama, exibiu a capacidade operística transitando com elegante desenvoltura e graciosidade , como em “A Vigília” (La Veillée), suíte lírica para coral, solistas e orquestra, assim como pelo trágico e romântico ciclo de canções, “Tragédia do Amor” , e na ópera “Sancho”, em que narra com maestria a epopeia de Dom Miguel de Cervantes, que igualmente inspirou Jules Massenet, Richard Strauss, Wilhelm Kienzl e Manuel de Falla. Em tais peças corais, o bem dosado equilíbrio entre peso dramático e orquestração, sugere traços de sua experiência com Fauré, e em alguma passagens sombrias chega a lembrar Strauss e Delius.
O aluno como objetivo principal de aprendiz tem forte participação em várias composições de Dalcroze, além dos métodos e exercícios, caprichos rítmicos, estudos plásticos e melódicos para prática de entonação, miniaturas métricas, peças didáticas para piano e percussão, utilizados em escolas até hoje.
Há trabalhos especialmente dedicados às crianças, a exemplo das muitas peças para canto infantil , piano e flauta, com afetuoso apelo às belezas e à dança da natureza, como em “Meus amigos, o vento, o mar e o Sol”, “Vamos cantar as rosas”, “O belo pássaro”, “O relógio velho”, “A fada de cabelos de ouro”, “A pobre boneca”, “Madame Neve”.
Dizer que a ênfase à dança em Dalcroze foi mais forte não seria de todo verdadeiro, pois a expressão corporal interage na mesma escala de grandeza com a sinfônica, a coral, a melódica, a musical enfim. Ouvindo sua obra, sente-se o movimento além dos limites métricos e compassados, na mais simples linha melódica ou na mais complexa estrutura polifônica.
Reservaríamos aos dois concertos para violino e orquestra um capítulo à parte. Neles se inclui quase todo o diversificado caráter artístico do compositor. Dor, nostalgia, drama, tristeza e alegria entremeiam-se a exigir virtuosística habilidade técnica para interpretar um universo que vai do Allegro com ritmo à Fantasia do final Apassionato, no primeiro concerto; e do “Largo Dolloroso” ao “Ritmo Ostinato All’allegro com Gioja”, no segundo . É notável como Dalcroze percorre caminhos e concepções musicais em tão variada amplitude com a mesma soberania. A atmosfera que reveste o 2º concerto para violino de exuberante tessitura interpõe, com destreza e maturidade, a aguda delicadeza dos gorjeios românticos , que se harmonizam com robustez épica na inesquecível conclusão que remonta aos poemas sinfônicos de Richard Strauss.
Não foi somente a um instrumento das cordas, o violino, que Émile Jaques-Dalcroze destinou sua criação. O violoncelo tem muita relevância na paixão que ele confessa nos "Morceaux", em duo com o piano, que soam como verdadeiros “lieds” românticos, tal como os “Ritmos esquecidos” (Rythmes Délaissés), os “Retratos falados (Esquisses)” e a Suíte para cello e piano. No piano solo, Dalcroze descortina seu lado apaixonado sem nenhuma timidez, em sintonia com a delicadeza sonora de Mendelsohn, Fauré , Debussy, e, em alguns momentos, o próprio Liszt. Nos opus 44, 45, 46 e 48 estão os encantadores Morceaux: Arabesque, Romance, Impromptu-Capriccio, Eglogue, Humoresque, Nocturne, Ballade, Capriccio Apassioanto e a Aria enfeixam um idílico leque de sonho e poesia.
A dança também adentra as obras para piano em colorido rítmico cheio de graça, com coreografia brilhantes. Melodias e fraseados que vão do “chorinho” à valsa, da canção à serenata, demonstram a profundidade do conhecimento pianístico de Dalcroze, capaz de criar harmonias e planos sonoros incrivelmente justapostos. Principalmente nos “Alegres rondós para dançar” (Rondeaux joyeux pour la danse), nas “Desenhos de Genebra em forma de dança” (Esquisses genevoises sous forme de danse), nas "Músicas para fazer dançar" (Musiques pour faire danser), e nas “Danças coloridas” (Danses bigarrées). Impressiona a profundidade cognitiva perante o teclado evidenciada nas obras para piano, criadas ao nível dos grandes compositores pianistas como Chopin, Liszt, Schumann, César Franck e Fauré, muito presentes no universo de Dalcroze. Ainda mais musicalmente robusto por incluir o tecido sinfônico, coral e operístico com igual virtuosismo.
As paisagens campestres, alpinas, dos bucólicos vilarejos, são fielmente descritas com estilo incidental, tanto em peças sinfônicas, a exemplo de Um campanário ao longe (Un clocher au loin), da série Tableaux Romands, como nos 12 Morceaux para piano, sobretudo em “Eglogue” (Écogla) no qual Dalcroze desenha poeticamente a atmosfera peculiar ao título, em um poema pastoral ambientado na natureza. Aliás, é nos Morceaux e nos 6 “Esquisses” (Esboços) que este músico exibe imensa acuidade sobre as possibilidades composicionais do piano. Nestas obras, vários pianos podem ser ouvidos simultaneamente, ou praticamente toda uma orquestra a cantar em camadas de sonoridades variadas, magnificamente entrelaçadas . Delicadas enunciações impressionistas, compostas e decompostas em rico cromatismo, dialogam com instantes de virtuosidade pirotécnica capaz de explorar todos os timbres do instrumento. São extremamente românticos. Neles é a paixão que dança livre e solta .
É assustadora a magnitude melódica explorada na criação de Émile Jaques-Dalcroze, que se estende do caráter mais solene, teatral, às mais líricas e apuradas sutilezas. Tudo devidamente bem dosado para cada instrumento protagonista de suas peças, principalmente quando o violoncelo, o piano e o violino são os solistas. Uma obra que não se restringe à criatividade técnica, nem tão pouco aos ideais em prol da metodologia didática e da dança. Em Dalcroze experimenta-se quase tudo o que se pode imaginar em música, uma vez que a infinitude criativa permanece inextinguível na Divina Arte. A plêiade de sentimentos que a emoção é capaz de nos provocar permeia sua concepção de maneira realmente magnífica como a beleza que ele descreve em “O lago” .
Toda a ideia de trazer a lume este personagem, não tão conhecido nem presente nos programas de música erudita, nos veio como desejo de enaltecer o significado da essência luminosa que une música, corpo, mente e espírito. Combinação artística que beneficia a humanidade ao longo de tantas centenas de anos, e, ainda hoje, mostra que está muito longe de se exaurir. Foi dignificada por Dalcroze em níveis inimagináveis, não apenas como emérito professor, filósofo, educador, músico e maestro, mas também como autor de vários livros e tratados sobre a relação integral do ser humano em fusão com mente, corpo e música, além dos inúmeros métodos de aprendizado didático.
O estopim para escrever sobre Dalcroze, veio ao assistir à Orquestra Filarmônica de Oslo executar "Montagues and Capulets", do Balé Romeu e Julieta, de Sergei Prokofiev, no concerto em homenagem aos vencedores do Prêmio Nobel da Paz de 2021, realizado no Oslo Concert Hall, em 11 de dezembro passado. A performance foi criada com estupendo resultado plástico que reuniu música e dinâmica corporal em inovadora concepção. Dançarinos, inicialmente confinados, exprimem as sensações de medo, angústia, ansiedade, pertinentes à insegurança e à falta de paz, para depois se integrar à melodia e ao ritmo libertando-se com teatralidade coreográfica que extasiou a plateia.
Neste trabalho enfeixa-se muito do que aqui tentamos exprimir sobre a evolução da arte concebida integralmente, que ultrapassa eras contribuindo para a lapidação da natureza humana, ao nos conectar com o que há de sublime em suas possibilidades idiossincráticas. É a síntese do poder criativo, capaz de nos revelar e fazer renascer por meio do que melhor produzimos.
É o que se extrai da ideia expressa por Nietzsche na frase: “Não creio em um Deus que não dance”. É o que se depreende da obra do extraordinário mestre Dalcroze. É o que se assimila ao assistir a este concerto de Oslo, que ocorre no início da terceira década do século 21.
Decerto, Dalcroze se sentiria imensamente gratificado se estivesse presente ao Concerto do Nobel da Paz, em Oslo. Quem sabe, sentiu, ou lá esteve...