Observar o rosto de um semelhante nos possibilita verificar expressões que carrega, se de paz, esgar, desprezo, raiva, dor, angústia, ódio, tristeza, alegria, indiferença, etc., o que não acontece quando o foco, por exemplo, cai sobre um gato, ou cavalo (apesar da inteligência e sensibilidade desses animais). Também não podemos assegurar que animais de outra espécie que a nossa acumulem interiormente a gama de sentimentos díspares que nos domina, e que muitas vezes sofre o domínio que exercemos sobre ela. Embora possamos perceber algumas mudanças súbitas de humor em macacos ou elefantes, por exemplo, quando acontece de macacos nos darem, às vezes, certeza absoluta de estarem rindo de alguma coisa, se divertindo, sim. Mas deixemos de lado o proselitismo e vamos ao que interessa: afinal, o que isto pode nos dizer de definitivo? A resposta mais inequívoca que a minha mente
pode alcançar, é, de longe, a de que existe uma História dos Sentimentos.
Apesar de na dianteira da evolução animal – com seu poder comunicativo bastante amplificado por um rico acervo inicialmente de expressões corpóreas (como aquele riso, esgar etc.), que evoluiu e se complementou na linguagem verbal e escrita – não significa que tal História seja apanágio exclusivo de humanos. Numa sequência de rugidos que revelam uma compulsão de pelo menos uns 10 minutos, leões comunicam sua presença a orelhas distantes, e apesar de não sabermos exatamente (uma exceção para biólogos estudiosos de comportamento animal) o sentido dessa comunicação, podemos ter certeza de que se trata de linguagem oral leonina, e, subindo de andar: que a História dos Sentimentos se entrecruza com essa outra, a da linguagem entre seres da mesma espécie.
Especulemos: é algo possível que a linguagem tenha se originado pela compulsão em verbalizar sentimentos (e esta compulsão uma tentativa de afastar de si concorrentes ou aproximar parceiros), e que por um tempo imensurável ela seguiu se refinando na trilha tanto da distinção quanto da harmonização desses sentimentos, despertados em muitas das vezes pelo arcabouço de sentidos da espécie, e sua adequação vital para determinado período histórico. Um terceiro elemento desse processo orgânico/evolutivo pode ter sido a criação dos tártaros mentais (ainda hoje verificáveis), espécie de nódulos, ou acúmulo de moléculas com a função precípua de armazenar os primeiros íncubos ou agentes formadores de memória conceptiva, e que foram se convertendo em formulações orgânicas do cérebro (os imensos períodos antropológicos da pré-história talvez sejam uma explicação para o tamanho do atual cérebro humano com parte muito maior de área em desuso). Nasciam assim os potenciais nichos de origem para os primeiros postulados do pensamento humano. Nesta linha de raciocínio temos a linguagem, como uma formulação póstera aos sentimentos, o que vai valer tanto para leões – ou cabras, ou doninhas – quanto para humanos.
Outra pergunta, embora correlata, é a seguinte: De quantos passados nos constituímos, afinal? Ou ainda: dos muitos passados incrustados em mim, qual deles se arranha mais no presente? Formulando agora numa linguagem híbrida e digital: qual aplicativo congenitamente instalado em mim por processos naturais terá mais larga aplicação em minha vida? Eis uma pergunta somente passível de resposta se levarmos em conta o conhecimento sobre ancestrais ainda rastreáveis, e mesmo assim, não tenhamos dúvida de que a resposta virá incompleta. Satisfatória talvez, mas incompleta, dada a abrangência da pergunta. Tomando como exemplo minha própria experiência de vida posso dizer que, dos meus caracteres genéticos adquiridos, o que se fez mais presente ao longo de minha vida foi, sem dúvida nenhuma o pendor manifesto ainda criança para o desenho, e depois para a pintura. Uma transmissão genética atestável em passado relativamente recente, e que talvez – não custa especular – encontre seu nicho original no mais remoto passado da humanidade (o que poderia ser o começo de uma resposta mais completa).
Mais uma vez, o que isto significa? Ao meu ver, que existe uma memória tenaz do passado, capaz de o refazer incessantemente, e que isto vai ao encontro das várias certezas de que dispõe hoje a Ciência quando se depara com a variável Tempo nos estudos de física, nos quais o binômio Espaço-Tempo tornou-se uma só variável equacional (depois da Teoria da Relatividade Especial. A. Einstein. 1905. Universidade de Berlim). Batendo em outra tecla, mas sem sair da escala, podemos hoje dizer que na flora geográfica, diversidade pra valer é o produto de uma convivência de Redutos, como bem estabelecido cientificamente pelo geógrafo brasileiro Aziz Nacib Ab’Saber, sendo que esta convivência de Redutos nada mais é do que uma convivência de passados, às vezes com idades geológicas bastante afastadas uma das outras.
Outra imensurável demonstração desse ‘’eterno passado’’ são as imagens recentemente divulgadas pela NASA das fotografias feitas pelo supertelescópio James Webb. Postado a uma distância de 1.500.000 km da órbita do sistema solar, o telescópio mergulhou suas lentes não na objetividade do presente, mas no passado do universo. Atestou estrelas em formação, emitindo sua luz a uma distância de 4,5 bilhões de anos-luz. Ou seja, o passado nos chega agora como um alerta para o futuro. E aí, uma nova pergunta: quantos passados nos esperam no futuro?
São muitas as evidências e avisos nascidos de uma Ciência Humana que hoje se nega a caminhar na Rota do Esclarecimento sem fazer as devidas correções e apagões de falsos passados. A filosofia herdada dos antigos (Suméria, Pérsia e Egito) pelo Ocidente, via Nietzsche, propôs uma imutabilidade de eventos (O Eterno Retorno) que nos dias de hoje perdeu grande parte de seu poder de convencimento em face do enorme diferencial causado pelo avanço tecnológico. Mais que pelo avanço tecnológico, quero crer que pelo progresso e libertação material que possibilitou a bilhões de habitantes da terra uma crescente atualização para as ideias de Deus, de gênero e de política social.
Respondendo à pergunta anterior, os passados que esperam por nós no futuro serão aqueles filtrados pela busca inexorável da verdade, despojados das fantasias e ilusões plantadas para domínio e controle de uma espécie humana que depois de um longo ciclo de vida quase vegetativa, começou a diminuir o espaço/tempo entre um salto e outro evolutivo que acabou quebrando finalmente a congruência que seu próprio saber mantinha com o giro monótono dos astros em volta.