“Esteja atento
Existem outros caminhos
E, em algum lugar, ainda existe luz”
Bukowski
Bukowski
Questionando sobre o bem e o mal, o bom e o mau, encontramos respostas que nos levam à ambivalência (termo usado para indicar a presença de sentimentos, impulsos opostos, conflitantes), e a Freud. Como algo, um fato, um acontecimento, uma decisão, pode, ao mesmo tempo, ser muito boa para algumas pessoas e inaceitável para outras? O significado do belo é relativo, e depende dos valores e da visão estética de cada um.
O mau, “o feio”, podem, na verdade, esconder o belo e o bom.
Para material de observação, escolhemos uma pequena cidade. Geograficamente beneficiada pela natureza, com uma cobertura verde, um clima de serra, e a presença de uma reserva de Mata Atlântica de Altitude, que propiciam um lugar agradável para se viver. Aos poucos, os habitantes assistem à chegada do progresso, com os “novos ricos” e seus veículos 4x4 pelas ruas estreitas e despreparadas para tal movimento. Nas janelas, os olhares ainda se surpreendem com “as novidades”, segundo alguns cidadãos que comentavam na feira livre semanal. A construção de condomínios residenciais para a classe “A” toma uma proporção inacreditável para a região, com casas de design contemporâneo, linhas retas e... muitos vidros!!! Os pássaros ficam perdidos, desorientados diante dos seus reflexos, brigam com suas imagens durante horas seguidas... obsessivamente disputam, e, por vezes, morrem ao chocar-se com o estranho anteparo, quando o sol distorce a realidade. Influências maléficas de quem constrói na área deles, sem cuidar do meio ambiente,
“O bom, o belo e o verdadeiro estão presentes na natureza”.
e que sequer se dão conta das suas responsabilidades.Sócrates
Para os consumidores, supermercados maiores e equipados com itens de primeira qualidade, bons vinhos, picanhas importadas, queijos finos, para os clientes do “belo e bom”. Produtos esses que desaparecem rapidamente das prateleiras, sob os olhares constrangidos de quem não tem acesso aos mesmos desejos, e passam timidamente seus cestos de mão entre os carrinhos de compras superlotados.
Há poucos meses, uma crise hídrica atingiu toda a região, e a prefeitura distribuiu reservatórios de água pelas áreas habitacionais da cidade. Como o relevo é de ladeiras, em geral íngremes, via-se no percurso homens, mulheres e crianças que subiam e desciam com baldes, panelas, caldeirões sobre os ombros, principalmente idosos, que se curvavam no sacrifício da sobrevivência. No mesmo trajeto, circulavam os quadriciclos, e os risos dos condutores, afinal era “boa” a diversão, e como seu contraste era mau!...
A chegada das festas juninas abasteceu economicamente a cidade. Turistas lotaram os pequenos hotéis, e alugaram casas com preços exorbitantes para assistirem aos shows contratados para o período. Para “facilitar o trânsito”, e melhorar o fluxo dos automóveis, um grande campo, no alto da serra, “foi limpo” para servir de estacionamento geral. Nua e descoberta, a terra acolheu os interesses municipais,
“Uma coisa considerada isoladamente não é dita ser boa ou ser má, mas somente com sua relação com uma outra, à qual ela é útil ou nociva, para obtenção daquilo que se quer”.
e agora resta, desmatada, à espera de novas investidas imobiliárias.Espinosa
O que restará do verde abundante em alguns anos? Na estrada, três caminhões repletos de madeira cruzaram o caminho. De onde? O que precisa morrer para dar vida à ambição humana? Novas propostas, lançamento de novos condomínios surgem em outdoors à entrada da cidade. O coração aperta ao imaginar o que virá ao chão. Que perda a natureza sofrerá? A vegetação próxima possui árvores de porte! Não existe a visão de preservar o máximo possível das árvores nativas, e estipular uma mínima porcentagem de reserva para o verde, um pulmão extra para os adquirentes. O crescimento da cidade é bom ou mau, é para o bem ou para o mal?
Um condomínio X ainda comporta vários lotes vazios. Neles, a vegetação rasteira servia de abrigo para lagartos cinza e coloridos, sapos de diversos tipos, grilos que formavam a orquestra noturna, e alguns pássaros que buscavam material para seus ninhos... No entanto, ficou decidido que os terrenos deviam “ser limpos”, e o consenso foi “passar a máquina”. À noite, agora, os sons foram reduzidos, a umidade também, o cheiro da chuva no “mato” não é mais o mesmo, é o odor de terra molhada, formando poças de lama. Mas, todos os proprietários estão encantados com o zelo de quem o fez, e se desdobram em elogios. Sim, o belo é admirado... Sem dúvida, vivemos de educadas discordâncias e de silêncios tristes e solitários.
Para reafirmar as ambivalências dos quatro conceitos, uma situação na rodovia fechou a questão. O trânsito, aos poucos, foi lentificando até parar. De longe, vislumbrava-se um caminhão capotado, de duas carrocerias, pneus no ar... A primeira coisa a se pensar, rezar e pedir por alguém que, eventualmente, possa ter se ferido no acidente. Os policiais organizavam a passagem, e havia um grande número de carros e motos estacionados ao longo do acostamento. Um segundo pensamento ocorreu nesse momento, e associou esse agrupamento à solidariedade humana X curiosidade. Mesmo diversas, as duas hipóteses se completavam. A memória buscou uma canção do colégio (“fica sempre um pouco de perfume nas mãos generosas”), e o consolo de saber que o homem ainda vale a pena!
À medida que a visão clareava, com a redução da distância, a presença de pessoas olhando em direção ao declive onde se localizava o veículo sinistrado, a perspectiva de que a curiosidade os hipnotizara ficou mais consistente. Todos queriam ver, só isso, e garantir a sua própria integridade. O “mal” do outro reassegurava o “bem” de quem apenas observava.
A incerteza foi desfeita ao passar, seguindo as orientações, ao lado do enigma. A realidade dura não permitia opções: Todos saqueavam a carga de milho que descera pelo barranco. Sacos para recolher o ouro amarelo apareciam das malas dos carros, das motos, das bicicletas e até nas costas dos mais desprovidos. Uma característica comum, comprovada e geradora de surpresa: o sorriso da transgressão coletiva, que transformara o mal do acidente no bem do produto adquirido e, por alguns, necessitado.
É assim que nós nos constituímos enquanto seres humanos, falhos, egoístas e cada vez mais distantes de “herdeiros do paraíso”.
“Com qualquer estupidez, falha, vício humano, deveríamos ser tolerantes, pensando que o que temos diante de nós é o nosso reflexo, pois as diferenças das individualidades é inavaliavelmente grande”.
Schopenhauer