Esta é uma pergunta medonha, daquelas para as quais ninguém tem uma resposta pronta, salvo os idiotas. É preciso refletir para respondê-la porque a resposta necessariamente tem a ver com a vida que levamos, como somos, o que fizemos e deixamos de fazer. Fundamentalmente, creio, tem mais a ver com os outros que com nós mesmos, a maneira de tratá-los, de considerá-los, se os vemos como meios ou fins de nossas ações, se os valorizamos em sua dignidade intrínseca etc etc. Sim, porque “...ao fim, seremos vistos pelo que amamos ou deixamos de amar”. E “ao entardecer desta vida, te verão no amor”, como bem disse São João da Cruz. Significa dizer que seremos lembrados e julgados pelo que fomos e fizemos de bem, e não por outras gloríolas acidentais, por mais importantes que estas pareçam aos olhos dos tolos.
Alguém poderá dizer: “Quero ser lembrado como um grande médico”. Muito bem. Os grandes médicos são importantes para a sociedade e para os seus semelhantes. Com sua ciência e sua técnica, salvam muitas vidas e tornam mais suportáveis outras tantas. Em tese, merecem reconhecimento e gratidão. Mas como será lembrado o grande médico que trabalhou a vida toda sem empatia por seus pacientes, o grande médico que só atendeu quem podia pagar seus honorários altíssimos, o grande médico que nunca se compadeceu de um doente, principalmente se pobre e anônimo? O grande médico que nunca sacrificou o sono, o lazer, as férias, as viagens e os feriados por conta de um enfermo que achou de adoecer ou de ficar grave em horas incômodas, como se as houvesse?
Outro pedirá: “Quero ser lembrado como um grande empreendedor”. Sim. Os empreendedores são necessários. Eles criam riquezas. Para si e para a sociedade. São agentes do progresso e do desenvolvimento; estimulam a ciência e a tecnologia, tornando a vida das pessoas mais fáceis e prazerosas. Criam empregos; distribuem renda através dos salários pagos aos seus funcionários; quando competem lealmente entre si, barateiam preços, sem prejuízo da qualidade e beneficiando os mais pobres. Mas como será lembrado o grande empreendedor que só perseguiu o lucro acima de tudo, que não cultivou nenhuma preocupação social nos seus negócios, que nunca fez nenhuma doação filantrópica sem descontar no imposto de renda, que nunca soube o que é solidariedade de qualquer espécie? O grande empreendedor que só pensou em si e nos seus, egoísta e mesquinho até o derradeiro centavo?
Outro, talvez mais simplório, se contentará dizendo: “Quero ser lembrado como alguém importante na sociedade pelos cargos que exerci”. Ah, como são tantos os que pensam assim, certamente porque são a maioria, já que nem todos podem ser grandes médicos ou grandes empreendedores, por exemplo. Ocupar cargos de algum relevo está mais ao alcance dos comuns dos mortais, até porque muitas dessas posições dependem apenas, não do mérito pessoal, mas de simples indicações de amigos, familiares ou padrinhos políticos. Esses cargos podem ser dos mais diversos tipos, nos três poderes do Estado. E até mesmo em instituições privadas. Na maioria dos casos, os cargos são maiores que os seus titulares; estes são engrandecidos por aqueles e não o contrário. Tudo certo. O mundo é feito também dessas pessoas. Mas como será lembrado (se é que o será) o figurão que cultivou acintosamente a vaidade, que sempre colocou seus interesses pessoais e familiares acima de tudo e de todos, que se deixou corromper em suas decisões e ações, para beneficiar ilegitimamente uns em detrimento de outros, que foi servil, bajulador, pretensioso, arrogante, egoísta, fraco com os grandes e forte com os pequenos etc etc?
Os artistas (de todas as artes), quando grandes, serão lembrados por suas obras. Mas estas não encobrirão totalmente o que foram enquanto pessoas. Se canalhas, serão sempre lembrados como tal, mesmo que tenham ganhado o Nobel, o Oscar ou honraria semelhante. Até hoje se fala nos cinco filhos que Rousseau voluntariamente abandonou, sucessivamente, num orfanato, alegando, cretinamente, que o fazia pensando no bem das crianças. Ezra Pound elogiava Hitler, Heidegger também, pelo menos, inicialmente. Nunca foram perdoados. Quem esquece?
E por aí vai. Normalmente, os homens não querem ser esquecidos. O epitáfio e a posteridade são as últimas vaidades. É compreensível. Mas talvez o melhor seja mesmo não ser lembrado, salvo pelos poucos que por acaso nos amaram em vida e apenas enquanto estes viverem. Depois disso, pode vir o esquecimento completo, aquele de que falou Manuel Bandeira no poema A morte absoluta:
“Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores.
Que apodrecerão – felizes! – num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos de saudade do que do espanto da morte.
Morrer sem deixar porventura alma errante ...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento.
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: Quem foi? ...
Morrer mais completamente ainda,
- sem deixar sequer esse nome.”
Quem quiser ser bem lembrado depois da partida, faça por onde. Não esqueça: no fim de tudo e após tudo, seremos julgados – e lembrados – unicamente pelo amor – e nada mais.