O mar não se distinguia do céu, exceto por estar um pouco encrespado, como um tecido que se enrugasse. Gradualmente, conforme o céu alvejava, uma linha escura assentou-se no horizonte, dividindo o mar e o céu, e o tecido cinza listrou-se de grossas pulsações movendo-se uma após a outra, sob a superfície, perseguindo-se num ritmo sem fim.
As Ondas, Virginia Woolf
O nosso inconsciente é um mistério mesmo. Ou nem tanto.
Uma das vivências mais fortes da minha infância e adolescência são os veraneios, banho de mar, peixe frito, sargaço , maresia, e o balanço das ondas. Sempre fui fascinada pelo mar. E também o meu maior pavor. Amava as marés fortes de janeiro e de tomar banho à tarde, com aquelas ondas “enormes” e sentir medo e alívio quando conseguia subir ou mergulhar. Mas também tomava muito caldo.
Resultado? Há décadas que tenho um sonho: estou no mar e de repente avisto uma onda enorme, me encho de calafrios, pavor mesmo, e a sensação de que vou morrer. Saio correndo e aos poucos chego a beira-mar. A sensação é quase a mesma dos meus tempos de criança e adolescente. O obstáculo? Gigante. Mas uma força interior de que não vou morrer na praia.
Pois bem. Temos todos passado tempos desafiadores. Pra combinar com os desafios pessoais, outro dia tive um pesadelo e acordei tremendo. Estava com as irmãs e alguns sobrinhos a tomar banho numa maré tranquila, mar azul, quando, de repente, alguém chama atenção para o fundo. Quando olho, vejo um paredão de água. Uma onda gigante, daquelas que arrastou Maya Gabeira. Até hoje não sei onde ela estava com a cabeça para surfar. Lembro da sensação de impotência frente àquele edifício de água. Mesmo que eu conseguisse correr, nem todos conseguiriam. Uma onda daquele tamanho não aparece impunemente. Ela seria uma devastação terra adentro. Os estragos como aqueles do tsunami na Indonésia. Por um instante vi a morte em forma de sal. O mais esquisito: entreguei-me frente à minha insignificância. Mas, claro, respirei e pedi calma. Fomos saindo devagar. A onda foi se dissipando e, sabe-se lá como, conseguimos chegar à praia.
Nessa hora acordei. Suando em bicas, lágrimas de pavor e o coração disparado. Custei a acreditar que era sonho. Fiquei a me perguntar por que essas ondas me acompanham no dormir. Assim fica difícil sonhar! A ilustração foi o Titanic e toda aquela tragédia no mar. Mas, lembrei também da praia de Nazaré, Portugal, e aqueles loucos, em busca de uma onda-parede dessas, de graça, só pelo prazer de enfrentar os seus minotauros interiores.
Como também não relacionar com o romance de Virginia Woolf, As Ondas, 1931, livro esse que tem seis personagens, seis instrumentos musicais, que, através de monólogos interiores, se entrecruzam, e cujo desenho lembra A Arte da Fuga, de Bach. “Uma narrativa musical, os pensamentos da infância, as reflexões obre os momentos de juventude". Dizem os críticos que o livro parece os allegros das sinfonias de Mozart, abrindo, cada vez mais, espaço para os lentos andantes dos imensos solilóquios sore a experiência, a solidão e a maturidade. Ressaltam, ainda, que As Ondas pode ser visto como uma meditação sobre a vida, e como um ensaio sobre o isolamento humano.
“Seis vozes à procura de si mesmas e daquilo que as transcende, que as justifique e lhe dê sentido... Às imagens de uma natureza fulgurante corresponde uma História feita de fraude, medo e opressão. Entre uma e outra, os seis temas musicais, as seis vozes emitem sons que não conseguem encontrar seu ponto de repouso: o passado não os consola, o presente os horroriza, e o futuro permanece, por excelência, o desconhecido”.
O meu pesadelo não tem como não ser inspirado pelas Ondas de Woolf. Muito interessante para o momento pessoal que passo e atravesso. E, mesmo sem ser estudiosa de Freud, imagino que, através dos meus diálogos intermitentes comigo mesma, consegui meditar e enfrentar esses monstros sagrados e profanos que, nos últimos tempos, teimam em me amedrontar.
“Nada do que foi será!”