Não, não se trata do pé de moleque feito com amendoim e açúcar caramelizado, aquela coisa que tem a dureza das pedras e denominação secular pois advinda das quituteiras, nos tempos coloniais. “Pede, moleque”, reclamavam estas a cada furto cometido por meninos em molambos e sem dinheiro para a compra daquilo que vendiam em tabuleiros, a crer-se na explicação que muitos dão à origem do termo. A história faz crer em que elas dariam de bom grado um doce daqueles aos filhos da escravidão e da miséria, caso o pedissem.
Eu e minha saudade, porém, não falamos disso. Tratamos, isto sim, dos bolos de massa puba a cuja procura tenho andado nas feiras livres da Torre, Jaguaribe e Oitizeiro. Até que ali os encontro, mas sem neles sentir, infelizmente, os temperos de Maria, a moça com quem minha mãe contava à beira do forno e do fogão. Ainda menino, eu me punha a seu lado à espera do momento mágico: o do embrulho daquela pasta um tanto firme, mais dura do que mole, em folhas de bananeira.
Todo o preparo era feito nos fundos da casa sob o terraço aberto para o quintal. Ali, Maria manejava, como ninguém, o fogo a lenha e o tacho de barro onde os bolinhos compridos, achatados e envoltos nas tais folhas eram assados em grupos de cinco ou seis. Ela sabia, com exatidão, sem nem abrir os pacotinhos, quando o cozimento atingia o ponto certo de cada lado. Calculava esse tempo pela queima dos pedaços de paus, ora acrescidos ora reduzidos para o abrandamento das chamas, caso necessário.
Já casado e pai de três filhos, descobri onde morava com a filha mais nova e o genro. Tivemos, depois disso, conversas demoradas e quase tão saborosas quanto seus quitutes. Lastimou a morte da minha mãe quando por três ou quatro vezes tocamos no assunto e, em cada um desses momentos, enxugou algumas lágrimas. E contou-me da saudade que sentia daquele velho fogão de tijolos avermelhados, na verdade, mais utilizado do que o de ferro instalado na cozinha para uso ocasional. “Dava para a gente graduar, na medida que quisesse, o gostinho de fumaça nas pamonhas e canjicas”, disse-me. Concordei, desde que ali estivesse no comando do fogo e dos temperos alguém com seus dons, também, para as favadas, as galinhadas, os sarapatéis e, é claro, os pés de moleque de massa puba.
Massa que a própria Maria preparava a capricho no sitiozinho onde inicialmente morou com marido e filhos. É produto obtido da fermentação da mandioca por três ou quatro dias em água renovada. As raízes assim amolecidas passam por uma peneira e são ensacadas para lavagens e prensagens sucessivas até perderem todo o cheiro de azedo e a cor amarelada. A boa massa puba deve ter a brancura de uma hóstia. E que ninguém a confunda com a goma das tapiocas. Isso é outra coisa.
O fato é que os pés de moleque da minha infância tinham a exclusividade dos temperos de Maria. Tinham o ovo, o cravo, a erva doce, a manteiga, o açúcar, a pitadinha de sal e o leite de coco em quantidades milagrosas, em porções de alquimistas, aqueles seres com o domínio da magia, da ciência e da arte. Exagero meu? Se assim for, peço perdão. E o mereço, porquanto talvez esteja a agregar àquela saborosa mistura a brisa soprada desde as margens do Paraíba com cheiros de caju e manga, o riso dos irmãos mais novos e as vozes de pai e mãe cujos timbres o tempo, indiferente às minhas carências, me apaga da memória, pouco a pouco, dia a dia.
Talvez por isso eu hoje não ache tanta graça no que sai das bancas e tabuleiros das feiras atuais onde não consigo divisar gente há muito conhecida ou reencontrar os velhos amigos. Nem mesmo quando regresso ao lugar das minhas origens. Ali, o mercado público, as calçadas e as casas com as fachadas de sempre apenas me agudizam a falta de tudo aquilo que já perdi.
Puba, palavra herdada do tupi e entendida, também, por mole, macio, pubo. Diz respeito à pasta resultante da fermentação natural da mais brasileira das raízes. Adaptada a todos os rincões nacionais, sua cultura é milenar. Em junho de 2015, quando da abertura dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, aquela que então nos governava falava da mandioca como um desses alimentos indispensáveis ao florescimento das populações. “Nenhuma civilização nasceu sem ter acesso a uma forma básica de alimentação”, dizia a moça para a zombaria das manchetes. “Saudação à mandioca”, é como o jornalismo partidarizado cunhou o que ali bem fora dito. Fosse um líder estrangeiro em igual situação a dizer o mesmo da nutrição e segurança alimentar dos europeus, os jornais o aplaudiriam. E o hipotético orador estaria a falar da batata, o tubérculo mais popular do mundo com origem igualmente americana pois surgido nos Andes e nas Ilhas Chilenas. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (a FAO, na sigla em inglês) tem relatório segundo o qual a batata, na época das guerras napoleônicas, já se havia tornado a base alimentar da Europa.
A brasileiríssima mandioca, produto também ameríndio, não mata da mesma forma a fome no mundo. E hoje não tem, em solo pátrio, seu mais volumoso cultivo. Leio que a africana Nigéria a produz em maior quantidade, restando-nos a segunda posição, dada a safra atual de 18 milhões de toneladas. Há quem a tenha mais saudável do que o trigo, por não conter glúten, um dos vilões da medicina moderna.
De resto, que morram de inveja os povos sem farofas, beijus, tapiocas, pirões de carne ou de peixe, tutus, pães de queijo, bolos de forma e, sobretudo, aqueles embrulhados em folha de bananeira, levem o açúcar mascavo com amendoim ou castanha, ou recebam o açúcar branco, o ovo, a erva doce, o cravo e o leite extraído do coco seco pelas mãos caprichosas de Maria. Que Deus a tenha.