Assim começa Positivismo, música das mais interessantes de Noel Rosa – “A verdade, meu Amor, mora num poço”. Atribui-se, na música, esta afirmação a Pôncio Pilatos, mas na realidade, o governador da Judeia pergunta a Cristo o que é a verdade, sem obter respostas para o seu questionamento. Fica por conta das licenças da criação poética. Até porque Noel também afirma que o criador da guilhotina teria sido uma das vítimas de seu instrumento, o que a história não confirma. Joseph-Ignace Guillotin não inventou a guilhotina, apenas sugeriu a criação de um instrumento que provocasse uma morte rápida e indolor aos condenados. Médico, ele era contra a pena de morte e cria que a invenção de um mecanismo que provocasse uma decapitação rápida seria o primeiro passo para a abolição da pena de morte.
Um outro médico de Lyon, de sobrenome igual ao seu, Guillotin é que morreu guilhotinado. Joseph-Ignace Guillotin esteve, contudo, a um passo de isso acontecer, por ter sido preso em 1794, período da Revolução Francesa conhecido como o Terror (1793—1795), quando muitos perderam a vida sob a guilhotina, inclusive revolucionários como Danton e Robespierre.
Mas voltemos a Noel Rosa. Sua música é, a despeito dos deslizes com a verdade e talvez por isto mesmo, saborosamente irônica. Trata-se de uma queixa de um amante contra o abandono de que é vítima por parte da amada, acabando com o seu equilíbrio emocional. Só quem amou e perdeu o bem que tinha é que tem a verdadeira noção do que diz o compositor da Vila.
Brincando com o que poderia ser a verdade, Noel diz que “também faleceu, por ter pescoço, o criador da guilhotina de Paris”. Ora, aí está o porquê do falseamento da verdade. Se a verdade mora num poço, é muito difícil vê-la. O que ela é dependerá da pouca ou muita visão de cada pessoa. Assim, o que se apresenta como verdade é, na realidade, um sofisma: quem tem pescoço é candidato a morrer na guilhotina; o criador da guilhotina tem pescoço; o criador da guilhotina morreu na guilhotina por ter pescoço. Obviamente, se não fosse o pescoço, ele teria sido salvo da decapitação. Este tipo de “verdade” está muito em moda, basta abrir o Facebook e toparemos com ele, como produto de uma militância vesga que consegue, na água parada e turva de um poço, enxergar a verdade que lhe apetece e que lhe é, portanto, conveniente. Mas devemos entender a ironia de Noel: quem tem coração sofre, se não tiver coração estará livre do sofrimento amoroso.
Ao compor a sua música, Noel ironiza, até onde pode, a situação do amante abandonado, e sua criação passeia tanto pelo campo semântico das flutuações cambiais – câmbio, libra, juro exorbitante, dívida flutuante –, quanto pelo Positivismo de Auguste Comte, cuja essência – Amor, Ordem e Progresso – é tomada para se estabelecer uma crítica da mais inteligentes aos conflitos de ordem amorosa, que nunca progridem...
Como se pode ver na letra da música, a amada despreza a lei de Auguste Comte – “o Amor vem por princípio, a Ordem por base; o Progresso é que deve vir por fim” –, para buscar outro tipo de felicidade longe do amante. O resultado que vemos é o desequilíbrio total do amante: tendo-lhe faltado o princípio amoroso sob o qual se baseia um ordenamento, a finalidade esperada do progresso não acontece.
O interessante é que as metáforas para a desarmonia do amante são de ordem do vocabulário econômico e cambial. Na época de Noel, suponho que o padrão mais consistente nas transações cambiais, depois do padrão-ouro, era a libra esterlina. A libra passa de medida de peso a moeda, promovendo um sistema para o equilíbrio cambial, cujo nome, equilíbrio, provém exatamente do peso-moeda.
O coração como libra só funciona se a harmonia entre amante e amada existir, pois a vida é “câmbio incerto”, em que o coração faz o papel de libra, tendo, portanto, o seu peso no equilíbrio emocional. A atitude da amada, que surge na metonímia do “coração que não vibra”, provoca a desarmonia, com a ruptura do amor e o consequente abandono do amado, tornando “dívida flutuante” a libra-coração do amado. O desequilíbrio se dá pelo fato de que a amada não doa o coração, ela o empresta, “com juro exorbitante”. Sob o peso do sofrimento amoroso, o amante aparece com uma ironia mordaz. O coração da amada não vibra diante de seu amor; ele torna-se, diante de outros candidatos ao seu coração, uma dívida que flutua, assim como câmbio flutua ao sabor das variações do mercado cambial. Do mesmo modo é o amor. Não há equilíbrio possível, se um dos dois prefere o borboleteio e a flutuação amorosa.
Coitado do amado, só lhe resta em desespero apelar para o veneno, envenenado pelo desequilíbrio da falsa libra da amante que, ao contrário do mercado financeiro, só provoca desequilíbrio, ao mercadejar o amor. Mas não queremos fechar a compreensão da música, com a possibilidade de suicídio do amado, vez que este enfrenta a realidade com ironia. É possível que a discórdia nascida entre o casal tenha sido por motivo banal, como, por exemplo, nascida “de um café pequeno”. É fato notório que o veneno, que acaba com as relações nascem, por vezes de situações banais. A decisão tomada pelo amado de envenenar-se a si mesmo, proveniente do veneno da amada, deve seguir, portanto, o seu exemplo: deixar flutuar seu coração, ao sabor do desequilíbrio do mercado amoroso, provocado pela banalidade que opera a discórdia.
Sem trocadilhos, Noel é impagável.