Devo inicialmente esclarecer que o título acima foi emprestado de uma crônica do mineiro Ivan Angelo (assim mesmo, sem acento circunflexo), constante do livro Certos homens, Arquipélago Editorial, 2011. Achei que poderia aproveitá-lo para dar-lhe outro enredo, fazendo o que no mundo da música costuma-se chamar de "variação sobre mesmo tema". Reconhecida e paga a dívida autoral, vamos então ao que interessa, ou seja, passemos à varanda. À varanda gourmet.
Eles moravam bem. O apartamento era próprio, a localização boa, o valor do condomínio era razoável e o tamanho do imóvel atendia as necessidades da família. Só tinha uma garagem, é verdade, mas eles só possuíam um carro e não pretendiam comprar outro. O casal era de meia-idade, os filhos encaminhados, a vida já devidamente organizada, como se diz. Aparentemente, estava tudo bem, não faltava nada. Até que.
ALCR
O homem resistiu o quanto pode. Argumentou pacientemente que estava tudo bem com o apartamento deles, que não precisavam absolutamente passar pelo transtorno desnecessário de uma mudança àquela altura do campeonato, que iriam se endividar etc etc. Usou todos os recursos que a racionalidade pôs à sua disposição, apelou até para as chamadas chantagens emocionais, mas ... nada feito. A mulher continuou irredutível. Queria por que queria um apartamento com varanda gourmet e não se falava mais nisso.
O leitor sabe como é. Quando a mulher encasqueta com uma ideia, sai de baixo, não adianta argumentar em contrário. O marido afinal sucumbiu, jogou a toalha, e não só a toalha, mas também todas as economias do casal, na compra de um novo lar, desta vez provido dessa tal de varanda gourmet, fosse lá o que isso significasse. Para ele, o que mais importava era a tranquilidade. Que viesse então essa varanda, se esse fosse o preço (bem alto, por sinal) do seu sossego doméstico.
ALCR
E foi o que fizeram, cheios de entusiasmo anfitrião. Ou melhor, foi o que a mulher fez, pois o marido, prudente, continuava discretamente desconfiado daquilo tudo. Toda sexta-feira recebiam dois, três casais e, não raro, amigas e amigos desacompanhados, de modo que rapidamente todos os conhecidos queriam ser convidados para aquelas reuniões onde não faltavam boa bebida, boa comida e boas conversas, principalmente estas últimas.
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Bom, separaram-se finalmente. Na divisão dos bens, a mulher preferiu ficar com o antigo apartamento. Não suportava nem ouvir falar na varanda que tanto perseguira. Para ela, o diabo que a carregasse (a varanda), e assim também o ex-marido, os ex-amigos, os churrascos e tudo o que a palavra gourmet lhe lembrasse...