Acabo de ver a propaganda de uma nova tradução da tragédia Hécuba, de Eurípides, da qual se apresenta um dos versos, como exemplo de tradução decolonizada, seja lá o que isto significa. O fato é que a tradução do verso específico me deu arrepios. Trata-se do verso 714 – Ἄρρητ᾿ ἀνωνόμαστα, θαυμάτων πέρα –, literalmente, “coisas inexprimíveis, inomináveis, além das coisas espantosas”, expressão de Hécuba para mostrar a sua indignação e seu horror com a morte do filho, Polidoro, morto pelo seu anfitrião, o rei trácio Polimestor, a quem fora confiado pelo seu pai, o rei Príamo.
O horror de Hécuba, que acompanha o horror do Corifeu, diante de tamanha ignomínia, deve-se a que o direito do hóspede e do estrangeiro é sagrado, tendo Zeus como o deus assegurador desse direito. Daí a pergunta doída de Hécuba, diante da impiedade cometida – Ποῦ δίκα ξένων; (“Onde o direito dos hóspedes?”, verso 715). Entenda-se que o termo dórico δίκα, o mesmo que δίκη, associa os significados de direito e justiça. Trata-se de um direito que se quebrado faz atuar a justiça sobre quem o ignorou e o rompeu, deliberadamente ou não.
A tradução arrepiante, porque a contrapelo, embora eu afirme aqui o meu respeito pelos tradutores, os quais não conheço e, portanto, não é nada pessoal, tornou o último trecho do verso 714 – θαυμάτων πέρα (além das coisas espantosas) – em “para além da Taprobana”. Sim, isto mesmo. Camões é chamado ao texto, o que seria bem-vindo se a tradução não distorcesse, ao mesmo tempo, Camões e Eurípides.
As situações nos dois autores envolvidos, com certeza, a contragosto nessa tradução, são diversas, assim como são diversos os contextos e estruturas do poema épico Os Lusíadas e do poema trágico Hécuba. O homem grego terá notícia da ilha Taprobana e da sua localização, através do registro de Estrabão (Livro II, 5, 14), no século I a.C., Ταπροβάνη. Não sei se o nome da ilha era conhecido, à época de Eurípides (490-406 a.C.). Ainda que fosse conhecido, não seria um lugar perto ou visitado, o suficiente, para poder ser utilizado numa tradução dos tempos atuais, referindo-se a um texto do século V a.C.
Na época de Camões, século XVI de nossa era, a ilha situada a sudeste da Índia ainda era chamada Taprobana, depois passou a Ceilão e, atualmente, chama-se Sri Lanka. A ilha ser conhecida ou desconhecida não é, contudo, tão relevante, se a atualização da situação coubesse no original. Mas não cabe. Ao que parece, as traduções atuais procuram uma “modernização” do texto a todo o custo, o que acaba surtindo um efeito “modernoso”, não moderno, e passando ao leitor uma impressão errada do texto traduzido.
Relevante é pensarmos como se distorce o sentido do épico camoniano, da grandeza da conquista, que revela a vitória do herói, no enfrentamento das adversidades, em uma empresa maior “do que prometia a força humana” (Canto I, Estrofe I, verso 6), quando da expansão do império português, para além da África e da Ásia mais próxima, no caso a Índia, alastrando-se para a Ásia mais longínqua, pela Indonésia e pelo Timor, já na fronteira do Novíssimo Mundo, chegando, “por mares nunca de antes navegados” (idem, verso 3), até a China, em Macau. Este herói, que suplanta os demais em viagens e em labores, é Vasco da Gama, representante maior dos Lusos, “peito ilustre lusitano,/a quem Netuno e Marte obedeceram” (Canto I, Estrofe 3, versos 5-6). Diante de Vasco da Gama, o sábio grego, Ulisses, e o troiano, Eneias, não realizaram viagens perigosas rumo ao desconhecido como a sua navegação realizou, lançando-se no Atlântico, bordejando a costa da África, contornando o Cabo das Tormentas ou da Boa Esperança, onde se confinava o terrível gigante Adamastor, e chegando à Índia, para dali tornar o caminho da expansão maior.
Também como Vasco da Gama, não realizaram guerras de expansão territorial, Alexandre ou Trajano. Ou seja, na pena transfigurada da épica, seja no mito, seja na história, os portugueses, tendo em Vasco da Gama seu representante-mor, se mostraram maiores que os heróis do passado. O fazer-se herói é, necessariamente, realizar a expansão de “Novo reino, que tanto sublimaram” (Canto I, Estrofe I, verso 8), tendo deixado sua marca “Em perigos e guerras esforçados” (idem, verso 5), por isto mesmo, saudados como “barões assinalados” (idem, verso 1), numa feliz tradução do “Arma uirumque cano” (“Eu canto as armas e o herói”) e do “insignem pietate uirum” (“herói insigne pela piedade”), do herói virgiliano, Eneias (Eneida, Livro I, versos 1 e 10, respectivamente). Não faltam sequer os “labores” pertinentes ao herói virgiliano, traduzidos no esforço e no perigo das guerras, por que passa o herói camoniano.
Diversa, no entanto, é a situação em Hécuba. Estamos ali diante de uma tragédia. Se a epopeia é o herói em ascensão, divinizando-se pelos seus feitos, a tragédia é o herói em queda, situação que o humaniza. Hécuba, ao lado de As Troianas, ambas tragédias de Eurípides, mostra a dor inefável daquela que foi rainha e de seu povo, após a queda de Troia, na guerra mais famosa de toda a história. São ambas tragédias da privação, em que a utilização do alfa privativo /-α/, expressa bem o sentido da perda irreparável e dos descomedimentos ali perpetrados, a famosa ὕβρις; desmedidas que ultrapassam qualquer barreira do que se pode dizer, inefável expresso pela construção sintética θαυμάτων πέρα. Hécuba perdeu os filhos, o marido, o neto, o reino, a cidade, a condição de rainha e de mulher; uma filha é morta, em sacrifício na tumba de Aquiles, Polixena; outra é impedida de seguir com Eneias, na fuga planejada pelos deuses, Creúsa; outra, ainda, será a serva de cama e mesa do grande Senhor, que destruiu Troia, Cassandra, enfrentando o trágico destino do assassinato. Ela mesma tornou-se uma das servas do vencedor muito astucioso, Odisseus, sendo obrigada a deixar a sua própria terra. Triste sina para uma mulher que dera tantos filhos e filhas a Príamo.
Mas as dores podem ser ainda maiores, como a de ver o cadáver do filho, morto por aquele que o deveria proteger. E morto, por quê? Pela ambição, pelo ouro que, incorruptível, como metal nobre, a tudo e a todos corrompe sem piedade — Auri sacra fames, diria Virgílio (Eneida, Livro III, verso 57), relatando a Dido, episódio semelhante ao da tragédia.
Só a lembrança da dor de Hécuba merecia mais do que a tradução que lhe deram, pífia, aquém, a nosso ver, de qualquer dor que transfigura e eleva mais do que qualquer ato de heroísmo. Se o propósito de Camões é a exaltação de Vasco da Gama; o de Eurípides é o de mostrar o aniquilamento de Hécuba. Em ambos os personagens, a metonímia age, fazendo-os representar a sua pátria. Mas a dor do aniquilamento está além, muito além de qualquer grandeza ou espanto que a Taprobana poderia traduzir.