A guerra e seus absurdos. Não bastam as incontáveis vidas perdidas nem os incalculáveis prejuízos materiais. A guerra e a violência que lhe é inerente terminam por afetar as pessoas das mais diversas formas, todas negativas. E, no entanto, os homens continuam a guerrear, como se ainda vivessem na mais remota antiguidade e não em pleno século XXI. Onde estão as Luzes, onde está a Razão, é de se perguntar qualquer um mais atento a tanto desvario.
Pasme, leitor, mas a Câmara Municipal de Kiev, capital da Ucrânia, decidiu retirar o nome do escritor russo Leon Tolstoi, glória da literatura universal, de uma das estações de metrô da cidade. Tudo como represália à invasão do país pelo facinoroso Wladimir Putin. Eu também custei a acreditar, mas a notícia estava estampada no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, um dos mais importantes do Brasil.
Tolstoi cancelado, quem diria. Tolstoi que é russo por nascimento, mas que pertence à humanidade, pelo valor inconteste de sua imensa obra literária, patrimônio de todos, como são também, por exemplo, a Pietá, de Michelangelo, e a Monalisa, de Leonardo. Fico imaginando os franceses, na Segunda Guerra, deixando de ouvir Beethoven, por conta de Hitler, ou empacotando as pinturas de Caravaggio, por conta de Mussolini. Dá para acreditar? Sim. Absurdos acontecem todo dia, ainda mais em tempos de guerra.
Há um certo tempo – comentei o fato em um artigo – a prefeitura de Los Angeles, EUA, retirou uma estátua de bronze de Cristóvão Colombo, descobridor da América, de um dos parques da cidade, debaixo da pressão de organizações indígenas americanas que veem no navegador um opressor das populações nativas, à época do descobrimento. Pode?
Comentando a insensatez, o jornalista e escritor português João Pereira Coutinho, colunista da Folha de S. Paulo, observou que esse é o paradoxo dos nossos tempos: “tão progressistas na aparência e tão medievais nos procedimentos”. Verdade. A burrice e a intolerância de certas atitudes tidas como “politicamente corretas” ofendem a inteligência e o bom senso de maneira gritante. Pergunto onde está a correção da burrice e da intolerância e não encontro resposta.
Certamente o cancelamento que atingiu o autor de Guerra e Paz não deve se restringir a ele. Devem ser cancelados também Dostoiévski, Turgueniev, Tchecov, Tchaikovski, Gogol e por aí vai. Paciência, uma coisa dessas depõe contra os ucranianos, por mais simpatia que possamos ter por eles neste momento de sofrimento.
Por conta do Holocausto, existiram escritores de língua alemã que decidiram nunca mais escrever neste idioma, que foi o dos nazistas mas foi também o de Goethe, o de Thomas Mann e o de Stefan Zweig. Este último, que suicidou-se em Petrópolis, em 1942, perseguido pelos sequazes de Hitler, continuou escrevendo na língua pátria até o fim. Assim também o autor de A montanha mágica. Vê-se, portanto, que as pessoas reagem de formas diferentes, embora vítimas do mesmo mal.
Deixarão de vender os autores russos as livrarias da Ucrânia? É possível. Imagine, leitor, as consequências desse boicote para a vida acadêmica e para a cultura ucraniana em geral. Quem sabe não serão interrompidas pesquisas, dissertações e teses sobre aqueles autores. Nos cursos de letras, poderá haver mudança no currículo, para excluir os escritores do país invasor. Os especialistas em autores russos terão que buscar outra especialidade, sob pena de perderem público e oportunidades. Tudo isso pode acontecer, no rastro do cancelamento de Tolstoi.
Percebe-se facilmente que medidas como essas são tomadas no calor das paixões, não são fruto de nenhuma reflexão. E a experiência ensina que os açodamentos não são bons conselheiros. Dia haverá, estou certo, em que Tolstoi será reabilitado na Ucrânia. E então se confirmará a tolice desse cancelamento estapafúrdio de agora.
Ah, ia esquecendo. Em Moscou, também recentemente, cancelaram os sanduiches da McDonald’s. Não sei se foi iniciativa dos americanos ou dos russos, em represália àqueles. Não importa. O que me chama a atenção é ver, de certa forma, Tolstoi equiparado a um simples hambúrger. Absurdos da guerra.