Já escrevi sobre o assunto, mas é sempre bom voltar ao passado, sobretudo se esse passado é a infância. Pois é, gostaria de ter dinhe...

Praga

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Já escrevi sobre o assunto, mas é sempre bom voltar ao passado, sobretudo se esse passado é a infância.

Pois é, gostaria de ter dinheiro e coragem para essa volta. Se tivesse, compraria uma passagem para Praga. E iria atrás de um resquício da minha infância.

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Dmitry Goykolov
Certamente que tomaria o avião em Recife. Muitas horas de voo, com escalas, possivelmente em Lisboa e Paris. Conforme previamente acertado com meu agente de viagem, na capital tcheca — onde nunca estive — ficaria hospedado num hotel simples, para passar poucos dias.

Logo que descansasse da viagem, sairia para cumprir meu objetivo. Sei que Praga é uma cidade bonita, cheia de pontos de interesse histórico e cultural, mas, não perderia tempo com roteiros turísticos — iria direto ao que me trouxera ali.

Sim, iria direto à Biblioteca Nacional, ou seja lá como for que se chame a biblioteca central da cidade. Na recepção, tomaria as informações necessárias, e, a pedido, com certeza seria encaminhado pelos funcionários ao setor que me interessa, não de livros, mas de revistas. Não as atuais, mas as antigas – aquelas a que com o tempo concedeu estatuto de relíquia. Entre as revistas tchecas que circularam nos velhos anos sessenta, procuraria uma em particular, e com sorte, encontraria os vários números da revista Radar.

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Biblioteca Nacional da República Tcheca ▪ Vit ▪ Wikimedia
Folhearia uma por uma, página por página, todas as edições da Radar dos primeiros anos da década de sessenta, até encontrar o que buscava. E o que eu buscaria seria o Setor de Correspondência que a revista manteve exatamente naquele período de tempo.

Numa edição dos anos 1961/1962 da revista, eu, com toda certeza, iria encontrar impressa uma cartinha, com foto do autor e tudo mais. Redigida em inglês, com dados básicos (nome, endereço, gostos, intenções, etc), essa cartinha breve e boba, propunha trocar correspondência com garotas do país, ou de fora. O autor dessa cartinha boba? Eu mesmo.

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Jonathan Francisca
Na época, eu tinha quatorze anos e não passava de um garoto tolinho, feioso, desengonçado, tímido, que nem sabia ao certo o que queria da vida.

Só sabia que gostava de livros, de cinema e de línguas estrangeiras. Cursava o ginásio no Colégio Lins de Vasconcelos e tinha uma professora maravilhosa, Adelaide, com quem já trocava umas palavrinhas em inglês. Na verdade, fazia mais que isso: como a professora – que cursava Letras na Fafi – era muito ocupada, me passava as provas de alunos de outros colégios onde ensinava, para eu ajudar na correção. Tudo sigilosamente, é óbvio. E eu, claro, todo orgulhoso de, naquela idade, já estar dando uma de professor.

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Hieu Vu Minh
Pois foi Adelaide que me falou da revista Radar, e me perguntou se eu não queria escrever para lá e receber cartas do estrangeiro. Topei, fiz a cartinha e enviei à Radar, e dentro de pouco tempo, começaram a me chegar as respostas. Eram tantas, todo mês, toda semana, até tudo ser sustado pelo golpe militar de 31 de março de 1964.

É duvidoso se um dia irei à Praga, mas de todo jeito me conforta saber que minha cartinha com foto e tudo está lá, impressa numa página velha da Radar, certamente guardada com o zelo dos bibliotecários do primeiro mundo. Afinal, foi minha primeira escrita publicada.

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aukro.cz
Tivesse eu coragem de ir a Praga, não sei o que sentiria ao abrir aquele número da Radar e me deparar com o autor daquela cartinha, aquele menino de quatorze anos de quem hoje mal lembro a fisionomia.

Certamente não seria um encontro tranquilo. Seria cheio de emoções confusas, talvez até choro houvesse. A ele eu não saberia o que dizer, e, pior, iria ter medo de ouvi-lo; medo do que ele pudesse me acusar, sei lá, fazer cobranças, jogar na minha cara os erros que cometi ao longo da vida, as oportunidades que desperdicei, os caminhos errados que tomei...

Melhor não embarcar naquele avião para Praga...

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  1. José Mário Espínola26/6/22 22:23

    Conheci, ou melhor: passei 2 dias em Praga, tendo conhecido muito pouco. Linda, a Biblioteca Nacional. Aliás: lá em Praga todos os prédios são muito bonitos. Muitos lembram Paris. Achei uma cidade mimosa: a impressão que eu tinha era que, ao dobrar uma esquina, encontraria a sapataria de Gepeto com Pinóquio ajudando.
    Parabens, João Batista, excelente crônica!

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