Je ne suis pas prisonnier de ma raison.
Arthur Rimbaud ▪ Une saison en enfer
Arthur Rimbaud ▪ Une saison en enfer
I
Quem foi que preparou e ofereceu a primeira xícara de chá, aquela de porcelana antiga azul com fundo estrelado, com o líquido verde cheirando a anis?
Eram xícaras desemparelhadas, remanescentes de antigos faustos, sobreviventes aos estragos do tempo. Algumas rachadas e coladas, mas as estrelas ainda estavam todas lá e, aos poucos, começavam a adquirir brilho próprio sob o líquido que, dependendo da luz, também mudava de cor: do verde da cana ao verde do mar.
Qual era mesmo aquele ano onde ainda nos encontrávamos? Era, penso, um sábado (para lá de mormacento) naquela casa, naquela sala imensa cheirando a passado,
A casa era parte da memória da cidade. Foi a sede da fazenda que gerou o povoado. Histórica. Imponente. Solitária. Nunca se via muito movimento em frente aos seus portões feitos de restos enferrujados de arabescos art nouveau, incorporação modernista de uma das últimas gerações de senhores que a ocuparam. Nenhum vestígio de qualquer presença a marcava. Sequer esperadas invasões. Era como se existisse uma espécie de senso comum aos poucos habitantes do lugar que estabelecia fronteiras, distâncias. E só a vegetação desordenada se aproximava do casarão sombrio e decadente, com aquele ar sinistro de casa desabitada há muito tempo.
As xícaras combinavam com o resto, com a tinta que não recuperava mais a cor original apesar das tentativas de restauro, com as telhas quebradas pelas muitas chuvas tropicais gerando goteiras imemoriais ou com as incontáveis salas cheirando a umidade e mofo, inclusive aquela que abrigava a imensa mesa de madeira escura colonial onde nos agrupávamos naquele dia.
Quem trouxe a segunda xícara foi você. Ela era também antiga e gasta como a primeira, porém muito mais cheia de estrelas desbotadas e de marcas do passado. Lembro muito bem daquela segunda xícara, talvez porque presto mais atenção às suas mãos do que a qualquer outra parte do seu corpo: mãos imensas, nervosas, parecendo brutais, mas delicadas, suaves, principalmente quando manipulam objetos frágeis como eu. Além disso, nunca esqueço o som da sua bengala à Lautrec ou do seu hálito de anis que chega junto com o roçar dos seus bigodes. Por vezes, quando lembro seu corpo ainda rijo ou suas grandes pernas sólidas como árvores antigas,
Éramos um grupo eclético, naquele sábado à tarde, em torno daquela mesa de cadeiras também desemparelhadas, resgatadas por você dos restos da cidade. Da janela, as bananeiras nos espiavam. Sempre cúmplices. Mas, mesmo os cachorros vadios não se aproximavam muito dos portões. A casa e seus segredos...
Com a permissão da fantasia (e de mais xícaras cheias e estreladas) podíamos imaginar alguns esqueletos ocultos nas paredes grossas, no poço do fundo do quintal quase encoberto pelo mato, ou escutar acordes misteriosos vindos do piano alemão da sala ao lado.
Éramos sete. Número mágico, segundo Tino e seu esoterismo constante que nos predispunha a interrogações no mínimo quânticas. E ele quase sempre convencia a todos com o seu discurso feito de invocações e de magia. Afinal, alguém com aqueles cabelos louros encaracolados e aqueles olhos de anjo em queda livre decididamente deveria saber de destinos e transcendências.
Porém, estávamos ali não necessariamente por conjurações ou conjunções estelares. Viemos, apenas. Talvez, porque o dia era de sol e o tédio campeava no ar da metrópole. Para nós dois, especificamente, havia uma espécie de atração o vir até aquela cidade antiga, nem tão longe assim da capital e onde avoengos jaziam enterrados no cemitério que antes era parte da propriedade: dos meus antepassados e dos seus, meu falso Lautrec.
Você (a quem chamarei de O-Dono-Da-Casa) era mais um conservador de museu do que um anfitrião. Tratava a casa como monumento, nunca como um lar. Seu olhar pousava nos objetos e não só os via: os inventariava. Como um curador. Interrompia mesmo falas que achava interessantes para discorrer sobre ela. Eu, porém, não sentia qualquer ternura especial para com aquela realidade de tijolos e argamassa, sacadas e peitoris caindo aos pedaços. Mesmo que um dia gente do meu sangue e do seu tivesse ocupado os seus espaços. No entanto, devo confessar, ela exercia uma estranha sedução sobre mim. Como a dos abismos. Lembro que notei que, apesar de você ou eu nunca a termos habitado, alguma coisa que não ouso explicar me fazia imaginar que ela (a casa) se abria para nós como se estivesse em uma espera ancestral por nossa chegada.
Éramos sete, então. Eu, a falsa Tarsila, fazia mundo à parte naquela mesa. Não prestava muito atenção aos outros até que alguém perguntou sobre a história da casa (talvez tentando agradar você, o todo poderoso proprietário).
Mas ninguém naquele grupo estava interessado em história da arquitetura. O que se queria mesmo, além do sábado festivo, era a aura de lendas que acompanhava a casa e que se mantinha, apesar do tempo e das mudanças culturais e sociais do lugar. Para os cidadãos locais, segundo você, o consenso era de que ela era misteriosa e perigosa também.
Alguns rumores falavam de luzes estranhas em seus aposentos desocupados. Outros sugeriam visões de formas humanas, fugazes e escuras, que desapareciam atrás das árvores decrépitas. Entretanto, era consenso, histórias sobre gritos, desesperados gritos de mulheres escutados nas noites silenciosas da cidade pelos vizinhos mais próximos ou pelos ocasionais passantes desavisados.
Ao meu lado, na grande mesa no centro da sala, alguém de quem só sei que trabalha ou trabalhou como psi e que atende pelo nome de Teca (provavelmente fora do universo das terapias), dissecava cada um de nós com aquele olhar conhecido de consultórios e divãs. Estava calada, em observação contínua, desde a sua chegada no carro escuro
Um pouco mais longe de mim e perto de você, mas sempre distante de todos, estava o Grande-Artista-Conceitual. Naturalmente a imaginar hibridizações entre arte e vida enquanto esquecia, distraído, a taça estrelada cheia de absinto e respondia, monossilábico, a eventuais tentativas de aproximação. Não posso imaginar o que fazia ali, naquele mundo barroco. Talvez, como eu, quisesse apenas resgatar coisas do passado, mas certamente para usá-las como objets trouvés, metáforas, ready-mades, nas suas grandes instalações premiadas nas bienais. E, além do mais, ele não suportava Maurício, o pintor (irônico, mesmo mordaz, que nunca deu muito valor aos conceitos e se orgulhava da sua tradição artística artesã), que registra, sempre, o inconsciente da sua cidade. Labiríntica e orgíaca ela, dissecada em suas pinturas, gira em redemoinhos metafóricos. Seus espaços reinventados a partir,
Estranhos e cúmplices escutávamos as histórias do lugar. Lendas que falavam sobre mulheres trancadas nos quartos, isoladas do mundo naquela casa, nos aposentos do primeiro andar por onde passeiam luzes suspeitas depois do escuro. Mulheres que eram, para a tradição oral local, concubinas negras ou mulatas (mas, principalmente pobres) escravizadas por um dos seus primeiros proprietários. Um antepassado seu e meu. Prisioneiras. De uivos noturnos, que ninguém ousava questionar ou consolar. Não se sabia ao certo o número das encarceradas e quem sabe, posteriormente, emparedadas ou o seu tempo de permanência nos quartos/masmorras fechados com as grandes chaves que pendiam, (segundo as histórias dos mais velhos), do cinto do coronel.
Tentei Imaginar a vida diária daquelas mulheres cativas. As lendas falavam de raptos entre as filhas mais jovens e bonitas dos moradores da antiga fazenda. Mas a verdade perdeu-se com o tempo e nada se sabe para além dos mitos sobre seus lamentos noturnos. Como se falássemos sobre histórias da Mãe D’agua nos rios que cortam a terra ou sobre as da Cumade Fulozinha, a duende fêmea dos canaviais e das florestas desaparecidas do lugar, e não de seres humanos aprisionados e violentados.
Dor, medo, vergonha, desespero e morte. E, segundo a mitologia, ou história oral, como queiram, mais de uma matou-se (ou foram mortas) e jazem enterradas entre as mangueiras estéreis do quintal ou emparedadas nas grossas paredes originais da construção centenária.
A ideia dessas mulheres gritando para a noite trazia-me (traziam-nos) imagens desesperadoras, angustiantes. E, quando o fim da tarde se aproximou, a presença de seus lamentos era quase palpável, lembrando-nos da tradição patriarcal, escravocrata e latifundiária do lugar. As imagens (em grande parte, presumo, resultado das muitas xícaras esvaziadas) foram ficando tão nítidas para nós, que a saída foi o riso e as “boutades”, o que nos remetia a salões e saraus de antigamente e nos afastava dos fantasmas do solar e dos nossos fantasmas particulares. Os gritos então se amenizavam, quase desapareciam.
As xícaras foram novamente cheias e recordo que alguém ficou a proclamar o fascínio sexual do “droit du seigneur” que eu repudiava, politicamente correta, enquanto imaginava as mãos do antigo proprietário da casa no meu corpo arrancando espartilhos e pérolas com que, diziam, ele ataviava suas prisioneiras antes de arrastá-las para a cama.
A noite continuou com ares surrealistas. Relembrávamos Appolinaire e Breton. Concordávamos todos com a ideia do abandono da contradição vigente entre sonho e realidade em benefício da criação de uma supra realidade. Esquecer o universo burguês e conformado para além das paredes daquela casa, daquele território, em favor do fantástico, do onírico, parecia a sequência certa, o ritmo correto a ser seguido. Éramos tão jovens, sonhávamos tanto.
Mais xícaras, mais estrelas e ficávamos ali, suavemente suicidas, alguns já deitados em algumas redes vermelhas, azuis e uma, lembro, estampada com grandes flores violetas, provocantes flores de maracujá... Redes penduradas nos armadores de uma das salas de estuque úmido. Alguém, penso que foi Maria, a das pesquisas vegetais, gritou primeiro: Vive le 14 juillet.!!!
II
Não sei bem a que horas todos partiram e ficamos apenas eu e você, adormecidos. Sei que acordei com sede e com barulhos que vinham do primeiro andar. Não era tão tarde assim, talvez umas duas horas da madrugada. O mau cheiro da casa, um odor de coisa morta, parecia mais acentuado. Mofo e podridão. Um cheiro úmido desprendia-se de tudo. Não se escutava mais cigarras e o silêncio pesava, interrompido somente pelo estalar do assoalho do piso superior. Ruídos de passos cautelosos e ritmados.
Qualquer coisa, porém, minha intuição talvez, dizia que não eram amantes desgarrados que provocavam os ruídos.
Você jazia, desmaiado de absinto, na rede das flores violetas violentas e se poderia pensar até que estava morto se não se prestasse a devida atenção ou escutasse o seu respirar pesado de bêbado. Balancei o punho da rede, chamei seu nome e... nada. Não consegui mais dormir e fiquei na escuta. Pouco tempo depois me pareceu ouvir um som, um gemido no alto da escada.
A casa rangia, me envolvia e eu iniciei hesitante uma investigação pelos aposentos do térreo onde algumas lâmpadas elétricas deslocadas me espiavam dos bocais. Tinha a impressão de estar ouvindo passos atrás de mim. Não sabia se havia iluminação no andar de cima quando me enchi de coragem, apanhei uma lanterna na cozinha (o efeito do absinto havia passado totalmente, eu pensava) e comecei a subir a escada.
Quando cheguei ao meio dos tantos degraus, senti que havia alguma coisa errada, mas não sabia bem o que era. Minha sombra, alongada, projetava-se na parede iluminada pela lanterna. Quando cheguei ao alto da escada parei, escutei e olhei para o corredor. Vazio. O barulho, entretanto, continuava. Parecia, agora, o arranhar de uma porta alternado por um ir e vir de passos que faziam ranger a madeira do piso. Vinham de um dos muitos quartos escuros, alguns com portas entreabertas que rangiam com o vento. Um, no fundo do corredor, tinha a porta trancada e qualquer coisa, um sentido qualquer, me fez ter certeza de que os ruídos vinham de lá.
Vi a porta se aproximando cada vez mais. Lentamente. Como em câmara lenta, embora eu andasse depressa, quase correndo pelo corredor. Foquei a lanterna e vi que as dobradiças tinham cedido e que a porta tinha a parte inferior encostada no chão. Se eu estivesse em meu estado normal acho que teria dado meia volta e saído dali naquele momento. Mas os restos do absinto e a adrenalina me fizeram prosseguir e, então, agarrei-a com as duas mãos e empreguei toda a minha força para empurrá-la.
A porta se abriu com um rangido que lembrava um gemido de dor. Lancei o foco da lanterna em seu interior e dei um grito que provavelmente foi ouvido por toda a cidade e que deve estar contribuindo ainda hoje para o currículo macabro da casa. Juro que vi, por mais que, depois, até você tenha falado de absinto e alucinações. Por segundos ela estava lá, grandes olheiras, magra, com uma roupa lembrando outro século, andando em círculos pelo quarto como os prisioneiros andam pelos pátios das cadeias. Acho que fiquei paralisada. Pode-se ficar assim, aprendi, do mais puro terror. Ela me estendeu os braços e sua mão fria tocou a minha e senti algo duro em minha mão. Depois fugi. Não sei onde fui encontrar forças, mas fugi. Cai lá pela metade da escada. Foi quando torci o pé calçado com aquelas fatídicas sandálias de salto chamadas Anabela. O grito deve ter sido realmente forte, pois quando consegui chegar, lá para os lados da sala das redes, você já vinha ao meu encontro com cara de apavorado.
Provavelmente você teve uma alucinação. Foi sua conclusão.
Quando, finalmente, eu consegui falar e contar o que acreditava ter acontecido você completou pensativo que pode haver alguma verdade na ideia de que as casas absorvem o passado, as emoções, as energias. Talvez o absinto tenha agido como catalisador. As justificativas que me deu, naquele momento, ficavam entre a tentativa de lucidez e as dúvidas que todos nós sentimos quando chega o escuro.
De qualquer forma abandonamos a casa e a cidade no meio da noite e, quando cheguei à minha desabei na cama com as luzes todas acesas. Dormi na claridade durante muito, muito tempo mesmo. E também, por muitas e muitas noites, sonhei com aquela porta se abrindo e aquelas mãos se estendendo para mim. Você, com o tempo, admitiu cada vez mais a ideia do absinto e das alucinações. Eu bem que queria acreditar e duvidar do que vi. Mas, o fato é que nunca mais voltei para a casa ancestral de nossa família ou sequer passei por perto daquela cidade. Isso aos poucos foi nos afastando, pois você não conseguia abandoná-la de vez às ervas daninhas e ao mato que brota até dos telhados.
Talvez não tenha sido só por isso que nos perdemos de vista finalmente. Os desencontros das pessoas não necessitam histórias de fantasmas antigos.
Podia, como você, deixar tudo por conta do absinto. Seria bem melhor para minha sanidade. Mas como explicar a chave grande, antiga, enferrujada, que eu trazia apertada na mão (a que nunca lhe mostrei) quando desci a escada?