O pequeno grupo já estava formado e, como sempre, bem atento. Sem interromper o trabalho Seu Macedo, sapateiro dos bons, deu sequência à conversa. Havia acabado de lembrar do que se passara com Antonio, o vizinho, nos idos de 1944. Precisamente, em 6 de junho, o Dia D do ataque aliado às tropas de Hitler, na França ocupada.
Não que a guerra na Europa tivesse algo a ver com aquilo que se preparava para narrar, 14 anos depois, aos ouvintes habituais, quase todos meninos de calças curtas. A data era citada apenas para situar o momento e a razão pela qual o Açude do Ronca perdera suas águas.
Antonio ali estava, vivinho da silva, para confirmar a história. Até porque foi com ele próprio que as coisas se passaram. O peixe que já havia desentortado uns vinte anzóis seus não escaparia desta vez. Afinal, iria abocanhar ferro inglês retirado de um pedaço de trilho da Gretueste (na verdade, Great Western) e malhado em brasa por Severino, ferreiro afamado na região. Em 6 de junho de 1944, às 11 e 30 da manhã de um sol a pino, Antonio esperava em vão por uma fisgada. Parecia que o danado do peixe entendia que, agora, perderia a batalha, tal como Hitler. Eis que, de repente, lá vem o puxão. Pedro, o roceiro, ouviu os gritos de um Antonio arrastado de cima do paredão e correu em seu socorro. Cravou as duas mãos no cós da calça do amigo e passou, também, a ser dali arrastado para a água. O mesmo aconteceu com seis trabalhadores a caminho do eito. Todos se puseram em fila indiana, um a puxar o outro, na ajuda ineficaz ao pescador.
Guilherme punha toda a fé do mundo nos contos do avô, pois citavam nomes, local, data e hora das ocorrências. Tinham, enfim, jeito e cheiro de documento. Este último fora adaptado, sem que soubéssemos, de um enredo de Mazzaropi. O neto mais novo de Seu Macedo se agoniava, arregalava os olhos e, com isso, também divertia a plateia do velho sapateiro cativa e ansiosa por desfechos sempre surpreendentes e engraçados.
— O danado do peixe emperrou. Não saiu nem quando amarraram ao jipe de Hilário a linha daquele anzol grossa como uma corda de atracar navio. Não foi, Antonio?
— Foi, Seu Macedo.
— O jeito foi amarrá-la, também, no trem que partia da estação. Desta vez, o bicho saiu, mas saiu com açude e tudo.
As gargalhadas ecoavam até o Beco do Padre aborrecendo, como sempre, a velha Zefinha, dona da casa, mulher sisuda, sem o bom humor do marido. Também, sem a estima que a este dedicavam pobres e remediados, grandes e pequenos.
Mas até que era dada, ela mesma, a certas brincadeiras. Sentada numa cadeira de balanço, mandava a garotada perfilar-se para tomar, um após outro, o mais forte beliscão que um ser humano era capaz de aplicar em canelas alheias com os dedos dos pés. Não deixava de provocar risos, contudo, em razão da galhofa que de si próprio fazia aquele bando de cobaias em fila para a tortura: os primeiros zombando dos últimos.
O que a tudo isso agora me transporta é a foto de um antigo pé de ferro há pouco descoberta na Internet. O garoto que eu fui passava horas vendo aquele velhinho de bigodes longos a cortar, coser couros e pregar solas com o auxílio de uma máquina de costura robusta, apropriada ao ofício. A fazer uso, também, de modelos de madeira de todos os tamanhos a fim de moldar os calçados para a freguesia diversa em idade e altura.
Mas eu gostava mesmo era quando ele encaixava os sapatos no velho pé de ferro para fixar o solado e o salto. As marteladas enfiavam e retorciam as brochas, ato final do mais puro artesanato. Seu Macedo recorria, nessa fase do trabalho, à ajuda dos meninos que dele se acercavam. A pedido seu, procurávamos por pontas de pregos no interior de sapatos novinhos em folha. Em vão: todas estavam devidamente retorcidas pelas batidas do martelo contra o metal.
Pequeno, franzino e quase sempre presepeiro, ele contrastava, absurdamente, com a mulher de maus bofes. Quando vi aqueles avós de “A Era do Rádio”, filme de Woody Allen, foi dos avós de Guilherme que, de imediato, lembrei.