Na madrugada de 23 para 24 de agosto de 1954 eu me achava de rádio ligado na Mayrink Veiga, à janela de fundos do velho sobrado onde funcionava o jornal O NORTE, a aragem da noite cheirando a velhos e lodosos telhados, e a me envolver num adágio entremeado na 3ª Sinfonia de Brahms. Não aprendi a ler música, li pouco dos seus entendidos, mas lá por dentro, e por trilhos que me serão sempre misteriosos,
surge uma certa música como o último bonde a nos salvar do desarrimo.
Os poucos e precários ônibus e marinetes que existiam recolhiam-se com a última aula do Liceu. O plantão do jornal nunca encerrava antes da meia-noite. E o presidente Getúlio, acuado pela oposição agravada com o tiro em Lacerda, sem mais o apoio dos que chegaram a generais pelas suas mãos, convocara a reunião que fechava a cortina com aquele tiro solitário no coração. O programa de clássicos leves da Mayrink era minha única companhia; lá embaixo, no térreo, o impressor Romeu aguardando o instante de lacrar a página e ligar a máquina com a manchete do pedido de licença.
O presidente licencia-se, recolhe-se, e sem tirar os ouvidos do fone eu ali mesmo arreio. Não sei bem se derreado à janela dos fundos onde chegara desde o começo da noite, se no salão já esvaziado e sombrio do Catete ou naquele andamento lento, “poco allegreto”, entre o sono e o sonho do bonde com seu motorneiro de grandes barbas brancas, cabelos ao vento, reaparecido outro dia entre os astros da intimidade de Germano Romero. E como esse arquiteto lírico se exprime:
“Há tanta coisa implícita naqueles diálogos entre o piano e os sopros. Ora se sobrepõe a angústia da desilusão, mas logo se dilui nas doces respostas das cordas ou do oboé solitário em alentos de regozijada esperança”.
Façamos as contas: daquela madrugada de 1954, indo pelo amanhecer tenebroso de um dia de janelas forradas de luto, até este junho de 2022 passaram-se quase 68 anos. Quantas vezes voltei a ouvir o motorneiro do adágio que me fez descer na Torre sem a leitura instrumental que mais me envolve nesse prodigioso mistério da música!De novo, na última quinta-feira, lá vem Shostakovitch, mais do que com a sua densa e forte música que eu ouvia sem me situar em seu mundo. Que mundo, o de Pais e Filhos de Turguêniev? Os de Tolstói, Gogol, Dostoiévski? Mundo ao mesmo tempo brutal e lírico, sombrio e esplendoroso, revolucionário, resistente ou agressivo?
O autor de “Leningrado” vinha imprensado, de alma torturada, preso, no cerco terrível de 1940. A sua sinfonia composta numa das provações mais severas de todos os tempos pela fúria bárbara do exército nazista. Sem alimento, comendo os cadáveres que o gelo conservava. O inferno que Dante não descreveu e que veio dar o tom da 7ª Sinfonia traduzida pela bela crônica de Romero. Agora — liguei o YouTube — vou ouvi-la, sabendo.
Não tenho dúvida em associar o lírico a esse arquiteto sensível ao clássico e ao pós-moderno dos nossos dias. O lírico de quem não escolhe matéria ou antimatéria para tratar com sensibilidade.