Estou na varanda e Mochi, o gato, acompanha com a cabeça os movimentos dos passarinhos na árvore. Direita, esquerda, alto, baixo. Está...

Nada vai mudar meu mundo

Estou na varanda e Mochi, o gato, acompanha com a cabeça os movimentos dos passarinhos na árvore. Direita, esquerda, alto, baixo. Está hipnotizado, louco de desejo de pegar um pássaro. Cada movimento das aves é um fio que o faz se mexer como se fosse marionete. O silêncio da manhã é rompido por um riso curto. Eu me volto, nada vejo. Estou só. Mas eu a sinto, uma presença invisível que me espia. Ouço o seu respirar na minha nuca. Os lábios se aproximam dos meus ouvidos. Ela sussurra: “Não desdenhe do gato. Você é igual. Quem lhe controla?”.

Desfilam diante de mim todas as situações em que ri e chorei, mergulhei em agonia, ansiedade, raiva ou euforia por causa de ações alheias.

S. Zaghetto
Há anos, luto arduamente para ter um mínimo controle sobre mim. Defendo-me do que pode me converter em pequena folha carregada pela ventania das paixões, minhas e dos outros. Nem sempre consigo, mas recomeço no mesmo instante o esforço.

O desejo pode me subjugar. A repulsa também. Vigio-os de perto. Um desejo frustrado pode levar a sofrimentos e a crimes, de acordo com a importância que se lhe dá. Ocorre no mundo há milênios: gente vingativa ao ser abandonada pelos cônjuges, gente que cobiça a riqueza alheia, gente que mata por inveja. Desejo e frustração são irmãos gêmeos.

“Nada vai mudar meu mundo”, cantou John Lennon, a propósito dos que desejam escapar das armadilhas do ego. Mais de três mil anos antes dos Beatles, essas palavras já ecoavam no nosso mundo. Carregadas pela tradição oral, antes da invenção da escrita, foram transmitidas pelas vozes dos poetas, dos avós, dos sacerdotes. Estão nos tratados de Yoga, na grande epopeia indiana, o Mahabharata, em mim e em muitos outros, que lutamos arduamente para incorporá-las à existência.

S. Zaghetto
Há anos trago no coração um ensinamento: “As sensações de sofrimento e prazer são efêmeras e estão sujeitas a constantes vaivéns. Aprende a dominá-las. O homem firme e sábio permanece o mesmo no prazer e na dor, na honra e na desonra”*.

É a voz de Krishna a me sugerir moderação e equanimidade. Por que ser delirantemente feliz apenas quando os desejos estão saciados? Por que se deixar dominar pelo desespero quando chegam as perdas e dificuldades que fazem parte do ciclo da vida? As perguntas se avolumam, provocam reflexões. São bem-vindas.

O que cultivo hoje é a tranquilidade na mente, o respirar calmo, o sentimento puro e descomplicado, as coisas mínimas e cheias de significado. Por isso examino detalhadamente a minha alma. Dedico-me a cuidar dela, flor rara.

Tento não perturbar nem me deixar perturbar. Se meu corpo adoece, busco a medicina e mantenho a alma quieta. Não sou melhor que nenhum outro ser humano: meu organismo é suscetível como o dos meus semelhantes. Paciência, pois.

A cada dia faço esforços para estar o mais consciente possível. Tudo observo, pouco me escapa, mas sei dos meus limites na ação.

S. Zaghetto
Diante das injustiças, a mão treme e eu a contenho. É natural sonhar com a reparação aos injustiçados, com a mudança no rumo dos acontecimentos; queremos ver milagres acontecerem; os maus serem castigados, os manipuladores desmascarados. Mas é raro isso ocorrer. Esforço-me para distinguir entre as ações possíveis e as inúteis. Não perco tempo com as últimas.

No ir e vir do mundo há muitos vendedores de ilusão aplaudidos e amados. Esclarecer suas vítimas é risco alto. Mais ou menos como dizer a um adolescente apaixonado que ele está enganado. Ai de quem o faça. Nem me arrisco: quando os egos estão envolvidos, as vaidades à solta e as paixões em ebulição, silencio e observo – pode ser que mais à frente surja o momento adequado para fazer o alerta. Se não vier, terá sido válido o aprendizado. O teatro da existência é riquíssimo e tem muito a ensinar. Além disso, é perigoso cumprir deveres alheios ou enfiar verdades não solicitadas na garganta do próximo.

O mesmo se dá quando chegam o sucesso e as felicidades breves que vêm de coisas externas. Com essas sou bem cautelosa. Examino-as com rigor, certa de que podem me insuflar o orgulho e
S. Zaghetto
comprometer meu discernimento, cegando-me para coisas essenciais. Pior, podem instalar no meu coração os apegos e o medo de perdê-las. Por isso, recebo elogios, homenagens e aplausos de coração grato, mas com a mente alerta. Busco não me tornar dependente deles. Um dia poderão me faltar e sua ausência não poderá ser fonte de sofrimento. Por vezes, são sinceros e amorosos; em outras ocasiões podem ser tentativas de me enredar. É preciso estar acordado para distinguir.

Basta-me a beleza ímpar de celebrar as vitórias alheias, perdoar como forma de autolibertação, não permitir que os maus e seus gestos infelizes me contaminem pão e cama. Tento viver cada dia com a consciência em paz, consciente de que sou frágil e pequena e que qualquer passo em falso pode me atirar ao abismo.

Aliás, gosto de me desafiar. De vez em quando olho-me no espelho e pergunto com ar sério: “Quanto custa a sua consciência? Do que você estaria disposta a abrir mão para conseguir coisas passageiras? O que você faria se perdesse isso ou aquilo?”. Gravo as respostas em letreiros de neon que piscam sem parar.

Tudo isso não é fácil. Está longe de ser simples. A batalha pelo autocontrole exige coragem, vontade férrea e perseverança, mas é o caminho que escolhi.

Penso nisso tudo enquanto o gato observa o passarinho. Ele está com sono, os olhos quase se fecham, mas ao menor piado mexe as orelhas e acorda. Não dorme, nada faz além de contemplar seu objeto de desejo. O passarinho o comanda – e ele nem sabe.

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