Ainda bem que restam uns dois ou três canais de TV franqueados ao filme documentário. Fraco das ouças, derreei sem graça na cadeira mais próxima, nesta segunda-feira, por não ouvir com a clareza desejável o telefonema de Guilherme Cabral — página em pessoa da pauta cultural de A União — a perguntar-me sobre os anos, esse amontoado já confuso de anos e de situações. Certamente como me sentia. Disse-lhe que me sentia sem culpa.
Consigo ouvir música, mas o mar bravio que ruge dia e noite nos ouvidos, sem nada com o de Tambaú, rouba-me a distinção silábica das palavras, que se tornam afônicas, zoam mas não vibram. E assim rendido, entreguei-me ao exercício da resignação:
“Que hei de querer mais?” — pergunto ao curumim que fui e que nunca me deixa nestas horas, desta vez a pergunta situando-me em meu primeiro começo de noite em João Pessoa, em 1951, maleta na mão, descendo na Praça da Pedra para me arranchar na casa do velho Quincó, trazido por seus filhos, para um fim de rua ali por trás da cadeia velha.
Ligo a TV e me vem um filme em preto e branco, num ponto do Rio antigo que mal reconheço. E são os ouvidos de pouca serventia, pobres ouvidos, que mais uma vez me acodem. Num instante fazem-me regressar a uma limpa de cana de 1942 ou 43, logo depois do eclipse, as enxadas trinchando a terra ao som de “Amélia não tinha a menor vaidade”. A chuva fina escorrendo na vidraça de agora, meus ouvidos na TV, e eu todo, o velho, o homem, e o espírito de todos os meus “eus” na louvação dos homens brutos do eito a Amélia , que era a mulher de verdade.
Foi a primeira canção popular a chegar aos meus ouvidos, reeditada de pronto e agora pela TV. No filme, o gari para diante do Teatro São Caetano, suspende a apanha do lixo para ouvir o poema de Ataulfo e Mário Lago. Custa acreditar que nesse mesmo tempo, num outro extremo geográfico de mato fechado, a mesma música venha atingir a alma do trabalhador rural e do caboclo sem rádio que eu era, trazida pela corrente misteriosa dos ventos.
Descalços, pisando em formigueiros de cana, comendo a farinha e o feijão que lavrassem em redor do rancho, não eram primitivos de espírito. Como não foram os entes já humanos que lavraram as itacoatiaras do Ingá.
Mas antes de ouvir cantar ou simplesmente solfejar a canção famosa, outra música de ritmo regeu a enxada dos nossos roçados: “O carretel embolando pelo chão... / Eu vou trabalhar no caminhão do coronel”. Durante muito tempo ninguém me falou da origem dessa cantiga, desse sonho que o caminhão das estradas despertava, “ir trabalhar no caminhão do coronel”. De que autor? Tenente Lucena não sabia, não vi em Câmara Cascudo e em nenhum outro registro do cancioneiro popular. Menos ainda no repertório de Jackson do Pandeiro, que vi de perto em Campina. Mas não saía de minha memória até que um dia, fazendo menção num escrito dos anos 1980, José Dias de Freitas, nosso antigo diretor do DER, veio situá-la no repertório do pernambucano Manezinho Araújo.
Com os carretéis a embolarem (não pelo chão) como pela alma do meu primeiro povo, somados à Amélia em preto e branco que a TV agora me presenteia, surge bem mais aberta e rica de reflexos a fímbria vital de luz que a muralha de edifícios não me deixou ver nesta manhã.