Na década de 1990 tive a oportunidade de entrar no Espaço Cultural José Lins do Rêgo e dar de cara com enormes fotografias de artistas mascarados, fotografados por Rodolfo Athayde, já conhecido artista visual da cidade. Estava começando minhas aproximações com as artes visuais, sem saber que, com o passar dos anos, algumas pessoas ali retratadas fariam parte da cena da minha vida cotidiana, inclusive o próprio Athayde.
No lançamento do livro e da exposição fotográfica Xis, no Centro Cultural São Francisco, fiquei muito emocionada. Porque fui me deixando tocar pelo fio das tantas vidas entrelaçadas pelos tempos,inclusive o tempo pandêmico. Fique observando as pessoas retratadas, sua entrega, seu instante decisivo nesse momento histórico de crise sanitária. Fiquei pensando na fotografia como extensão do fio de Ariadne, narrando um Tempo particular de Ser. Num tempo de instantaneidades voláteis, descartáveis, um outro caminho a seguir: a narrativa fotográfica como experiência de encontro, podendo revelar a marcação de pequenos milagres, e o grande milagre de se manter vivo numa pandemia de Covid-19.
Xis é uma exposição para se estar repetidas vezes, porque precisamos de mais momentos para processar o cotidiano representado no tempo da pandemia. O tempo de dentro, que foi uma experiência forte e particular, estar distante, estar consigo mesma(o). A experiência do isolamento social interrompida por um encontro com o fotógrafo e a imersão das pessoas na imaginação da Luz.
Numa era de produção de fachadas sofisticadas e elaboradas por aplicativos de filtros de luz, a máscara como suporte diário foi uma experiência marcante demais. Por efetivamente nos proteger, e ainda por nos limitar um pouco mais a respiração; por colocar literalmente uma barreira em nossa face, que nos impediu de ver por tanto tempo o rosto de alguém em sua plenitude. Por outro lado, a máscara deixava o olhar das pessoas mais escancarado. E os olhos, pelo dito popular, são o espelho da alma. Almas em suspenso, escancaradas, assustadas, amorosas...
Fátima Duques Amorim ▪ Jonathas Falcão ▪ Helayne Cristini B. Silva ▪ Jonas Epifânio Santos Neto ▪ Ingrid Trigueiro ▪ Leopoldo Nogueira / Fotografia Rodolfo Athayde
Os olhares dizendo tanto em Xis... e as máscaras como suporte artístico. Cotidianamente, a gente cuida de nossa auto-representação. No tempo pandêmico, chegam as máscaras, e nessa concretude ameaçadora, elas vão também compondo nossas narrativas sobre o que queremos mostrar.
Vivi a experiência de ser fotografada pelo artista. O processo do encontro durante o isolamento social foi a grande aventura. Havia a emoção pela experiência em si. Havia o desejo de maior permanência do artista em casa, mas havia a interdição da crise sanitária cronometrando de outra forma o momento de estar entre as pessoas.
Sandra Raquew Azevedo / Fotografia Rodolfo Athayde
Acredito que, para Athayde, foi uma das experiências mais singulares. Poder entrar nos lugares mais íntimos, as casas-sementes, dentro de um momento de singularidade histórica. Poder estar, quando quase tudo estava em suspenso, quando havia os perigos para além das esquinas. E quando existia ainda uma enorme vontade de estar junto.
O conjunto da obra de Rodolfo Athayde em Xis é bem potente, porque fala da resiliência humana, da capacidade espontânea da gente criar diante da perda, da dor, do desespero, da solidão, das carências, do espanto, do inexplicável. A gente não vê literalmente, mas o desejo está lá o tempo todo. Há desejo, há vida.
Eu olhei os tantos olhares que as máscaras emolduraram como lugares navegáveis. Pude olhar para meu próprio olhar também, um reencontro comigo mesma. E poder nos tantos olhares enxergar um pouco mais o artista e sua escritura poética, tão cheia de singularidade, afeto e Esperança.
Revi os olhos de meu professor Wellington Pereira, que nem já está fisicamente entre nós. E pude mais uma vez reencontrar nos livros refletidos na imagem, a paisagem mais amada e mais cuidada por ele.
O lançamento de Xis foi uma apoteose de reencontros, ainda com as máscaras. Um momento de celebrar a sobrevivência humana e apostar na reconstrução coletiva, cada pessoa ofertando um pouco de si mesma. Gratidão.
A exposição segue em cartaz no Centro Cultural São Francisco e o livro pode ser adquirido com o autor ou em algumas livrarias da cidade.