O convite do filho – duplamente especial por ser ele um artista – chegou como sopro de ar fresco num dia em que a comédia humana se exibia em episódios cada vez mais despudorados nas redes sociais. E era Chagall! Eu jamais havia visto um quadro dele ao vivo. E isso, bem sei, muda tudo. Sem falar que é o pintor judeu por excelência e eu ansiava por sentir a alma judaico-russa transbordando nas telas.
Era o dia 9 de março de 2017. Passeamos pela vizinhança do museu, admirando as amplas avenidas, os hotéis de luxo, galerias e lojas de grife. Meio Nova York, meio Paris. Um vento gelado varria as calçadas da cidade. Varria, não: chicoteava. Senti que eu viraria Mary Poppins a qualquer instante, mas Tarcisio impediu o voo e percorremos as calçadas rindo alto, com a ventania revirando nossos cabelos enquanto tentávamos escapar da fina poeira que desejava entrar nos nossos olhos.
Chegamos ao Museu de Belas-Artes de Montreal no fim da tarde. Era o primeiro dia da mostra, que trazia, entre os trabalhos expostos, algumas das mais conhecidas obras do artista, como Gólgota, Auto-retrato com Sete Dedos, Nascimento e Violinista Verde. Havia, além das pinturas a óleo e gravuras, as ilustrações de Chagall para as fábulas de La Fontaine; os desenhos dele para os figurinos da ópera Aleko, de Sergei Rachmaninoff; e um enorme conjunto de trabalhos para os teatros judeus na Rússia, com marionetes, maquetes, cenários e panos de boca.
Um presente extra: os painéis do teto da Ópera Garnier em Paris, que pela primeira vez estariam expostos detalhadamente. É uma das realizações mais importantes de Chagall, mas, obviamente, não pode ser retirada, tem raras representações em livros de arte e só pode ser contemplada a uma certa distância.
Assim, a exposição trouxe um filme que permitia ver o teto em seus menores detalhes. Nele, a representação da música de 14 compositores que inspiraram o pintor – Mozart (A Flauta Mágica), Bizet (Carmen), Beethoven (Fidelio), Debussy (Pelléas e Mélisande), Ravel (Daphnis e Chloé), Verdi (La Traviata), Berlioz (Romeu e Julieta), Stravinsky (O Pássaro de Fogo), Tchaikovsky (O Lago dos Cisnes) e Wagner (Tristão e Isolda). Projetado em uma grande tela circular, o filme dava a ilusão de estar na Ópera Garnier. E não havia como ver a profusão de cores sem lembrar do que disse o próprio Chagall sobre a obra: “Eu queria pôr no alto, como um espelho em um ramalhete de sonhos, a criação de atores e músicos. Cantar como um pássaro, sem teoria ou método, rendendo homenagem aos grandes compositores de óperas e de ballets.”
Há muitas formas de fruir a arte. Pode-se apreciá-la pelo seu impacto estético, pela conexão que se estabelece com a obra, pela perícia técnico-criativa de seu autor, pelo vínculo emocional despertado por determinado trabalho ou pela história do artista. Ou um pouco de tudo isso no caso de Chagall. Toda a sua obra é tão profundamente emocional, tão sentida e amorosa, que é um desafio ficar impassível diante dela.
Em cada pintura ele deixou pedaços de sua alma judaica. Há uma paleta de cores frescas e cândidas nas telas a evocar a infância na aldeia de Vitebsk. Estão lá os casamentos e festas tradicionais, os tefilins, kipás e talits, a música klezmer e cada símbolo do Judaísmo cuidadosamente depositado na tela. É um mundo de alegria, povoado por figuras voadoras, namorados que se enlaçam, violinistas nos telhados. Chagall manteve-se ligado à sua cultura e às suas memórias de infância. Essa fase está muito vívida, ainda, na sua arte de aspecto ingênuo, com espontaneidade de traços, desenhos livres e cores puras.
Tudo isso traduz a saudade que estrangulou, durante toda a vida, esse artista tão sensível, tão poeta. Há em várias telas a imagem sombria ou quase transparente do judeu errante, sem lugar, eterno imigrante, escorraçado na terra alheia e alvo de toda sorte de preconceito. O pintor passou a existência como estrangeiro. Depois que deixou sua terra natal, na atual Bielorrússia, viveu na França adotiva e nos Estados Unidos, sempre visitante, sempre exilado. De sólida e familiar, apenas sua herança judaica. Chagall se apegou a ela nos seus 67 anos de produção artística.
Naquele gelado março de 2017, entrei na última sala da exposição. Um aposento circular. No centro dele, um violino dominava a cena. Cravejado de pedras preciosas, trazia no verso uma estrela de David incrustada. Repousava, solene, dentro de um quadrado de vidro à prova de balas. Em torno dele, as enormes telas da época em que Chagall viveu em Nova York. Tempos sombrios, de nazismo, de medo e incertezas. A paleta perdeu as cores vibrantes e a dor do artista tornou-se palpável. Anjos e fios de fé misturaram-se a memórias e a uma esperança medrosa.
Um quadro me chamou a atenção. Emanava uma tristeza profunda. O fundo era a noite escura. A neve caía sobre casinhas brancas mal esboçadas que pareciam estar se apagando da memória. No centro da cena, um enorme relógio de parede. Antigo, de madeira escura com engrenagens douradas, escondia um casal eternamente abraçado. Uma grande asa azul se colava ao corpo desse relógio. No canto esquerdo, um buquê de flores jazia sobre a neve. As flores vermelhas tinham aquelas cores brilhantes que sempre me parecem inadequadas diante das lágrimas que caem sobre os túmulos recentes. À esquerda, quase invisível, um judeu errante carrega sua trouxa de roupas às costas. Fantasmagórico, fugidio.
Aproximo-me. Relógio com asa azul é o nome do quadro. Foi pintado após a morte de Bella Rosental, musa e mulher amada, namorada de infância, pedaço da aldeia, também judia. Talvez tenha sido a tremenda solidão do artista ou o lamento de um violino enchendo a sala, mas ali, juntos, eu e Chagall choramos a morte de Bella.
Não será este o objetivo final de toda arte: compartilhar a alma alheia por alguns instantes?