Era 1960. Da casa do meu avô, em Alagoa Grande, no interior da Paraíba, eu ouvia, incontáveis vezes durante o dia, vindo de um alto-falante instalado na praça da cidade, o som daquela música que nunca me saiu da cabeça. Menino, que ainda não sabia que existiam outras dores além das dores físicas, eu não entendia o que dizia a letra da canção, mas as suas palavras ficaram em mim para sempre:
Alguém me disse
Que tu andas novamente
De novo amor, nova paixão,
Toda contente.
Que tu andas novamente
De novo amor, nova paixão,
Toda contente.
Mas não era somente no interior da Paraíba que, em 1960, aquela música era exaustivamente executada. Durante os festejos da inauguração de Brasília, o intérprete da canção fora convidado pelo próprio Presidente Juscelino Kubitschek para se apresentar na cidade que então nascia. O disco com a música “Alguém me disse”, um bolero composto pelo cearense Evaldo Gouveia e pelo capixaba Jair Amorim, foi a primeira gravação brasileira a suplantar a marca de um milhão de cópias vendidas.
Anísio Silva, o cantor de “Alguém me disse”, era um fenômeno de popularidade naqueles anos. Nascido em 1920, em uma fazenda no município de Caculé, no interior da Bahia, distante quase 800 km de Salvador, mudou-se para São Paulo quando era criança. Trabalhou como balconista em farmácias, na capital paulista e, depois, no Rio de Janeiro. Em 1952, conseguiu gravar um disco, sem nenhuma repercussão.
Nos anos finais da década de 1950, quando já se aproximava dos quarenta anos de idade, Anísio Silva obteve os seus primeiros sucessos em disco. O cantor baiano destoava dos padrões dos principais intérpretes daquele período. Vestia-se sobriamente e a sua presença no palco era contida. Cantava de forma sussurrante e com timbre anasalado. Não era nenhum galã e um bigodinho fino acentuava a sua feiura (o cantor Juca Chaves, maldosamente, dizia na época: “Mais feio do que eu só mesmo o Anísio Silva”).
Para o jornalista e escritor Joaquim Ferreira dos Santos, Anísio Silva tinha “discrição na voz, naturalidade na emissão, zero de empostação. Cantava como se estivesse próximo de conversar [...] Era diferente também por ser mulato, num momento em que o preconceito estrutural da sociedade brasileira deixava a música romântica como gênero exclusivo aos artistas brancos”.
O extraordinário sucesso de Anísio Silva, a partir do final dos anos 1950, coincidiu com o surgimento do movimento da bossa nova, uma música feita por compositores universitários e de classe média, quase todos moradores da Zona Sul do Rio de Janeiro. Até o aparecimento da bossa nova não havia uma segregação na música popular do Brasil entre canções e intérpretes “chiques” e “cafonas”, ou “bregas”, como passariam, depois, a ser rotulados. Na poderosa Rádio Nacional, apresentavam-se no mesmo palco, com orquestrações feitas por maestros cultos como Radamés Gnattali e Lyrio Panicali, os nordestinos Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, os diversos “cantores e cantoras do rádio” e intérpretes sofisticados como Lúcio Alves e Dick Farney. A bossa nova mudaria isso.
Com as suas canções românticas, cantando amores desfeitos ou fracassados, Anísio Silva foi um dos primeiros alvos dessa elitização da música popular trazida pela bossa nova, chegando a ser tachado, depreciativamente, de “O best-seller da Zona-Norte”. Eram várias as explicações para o êxito alcançado por Anísio Silva. A cantora Ângela Maria achava que ele conseguia impressionar o público “usando sem querer um recurso que também Frank Sinatra usou no início de sua carreira: despertar o sentimento maternal das mulheres”. O irreverente produtor e compositor Carlos Imperial tinha outra explicação: “Anísio Silva tem a voz do namorado enganado e sofredor. Todo mundo tem pena dele e compra os seus discos. É o sucesso da caridade”.
Anísio Silva era um “falso brega”, como o classifica Joaquim Ferreira dos Santos. Os seus discos eram gravados com orquestrações de altíssima qualidade e as suas interpretações suaves pareciam com aquelas do seu contemporâneo e conterrâneo João Gilberto que, apesar de não aceitar a semelhança, admirava o estilo de Anísio Silva, como se constata em uma entrevista do início dos anos 1960:
“Anísio canta num estilo que difere por completo do meu [...] ele que é um dos mais legítimos intérpretes da música popular brasileira. Considero-me um fã de Anísio Silva”.
Depois de “Alguém me disse”, Anísio Silva ainda alcançaria outros grandes sucessos nacionais, dentre eles os boleros “Ondes estarás?” , também da dupla Evaldo Gouveia e Jair Amorim, e “Onde estás agora” , composto por ele. Em 1964, Anísio Silva abandonou a carreira para se dedicar a outras atividades, inclusive como proprietário de uma casa noturna no Rio de Janeiro. Três anos depois, retomou o trabalho como cantor, mas os tempos eram outros. Um seu antigo admirador, Roberto Carlos, detinha agora o cetro e a coroa da música popular. As românticas canções aboleradas de Anísio Silva estavam fora de moda.
Para Joaquim Ferreira dos Santos, Anísio Silva era “um cantor de massa sem truques popularescos, infelizmente desconhecido nos almanaques intelectuais da música brasileira. Passam por ele como se fosse um desafino do destino”. Anísio Silva morreu em 1989, esquecido.