Não gosto de música sertaneja, muito menos de Zezé de Camargo e Luciano, mas sempre me encontrava cantando No Rancho Fundo ♩♪♫ quando via uma novela das 8. Quando o filme “Dois Filhos de Francisco” — de Breno Silveira — estreou na cidade, fiquei com um pé atrás, perdida no meu preconceito; porém, uma curiosidade me seduzia para ir ao cinema... e eu adiando. Havia lido algumas resenhas e um artigo legal de Contardo Calligaris (Folha de S. Paulo). Pois fui. E adorei.
Já falei aqui, no ALCR, da minha emoção com pessoas que conseguem transcender suas condições, sejam elas físicas, psíquicas ou emocionais. A obstinação e a perseverança são valores que me intrigam. Desde um atleta que treina muito e atinge o Olimpo a um cidadão comum, que conquista o seu lugar ao sol. O escritor Inglês D. H. Lawrence acreditava que essa transcendência, principalmente a de classe, decorria do conhecimento; ele próprio, pelo estudo, saiu das minas de carvão rumo à academia e à ficção.
Mas, voltando ao filme, desde o começo mergulhei na emoção da história. A pobreza é algo que dói muito além do estômago. A trilha sonora se encarrega de dar o tom com uma música linda sobre um sabiá, e mais outra quando os meninos saem da casa dos pais, entregues à mão de um aproveitador barato, Miranda, vivido por José Dumont. Como Dumont fica maravilhoso nas vestes do brega-a-la-Falcão! Mais adiante, Zezé retoma essa canção, agora já famoso e com um milhão de discos vendidos. Mas suas lágrimas no show apoteótico, e com os pais no palco, são lágrimas do mesmo menino pobre e sensível que queria cantar na rodoviária para ajudar a mãe a botar comida em casa e minimizar a miséria de um barraco na periferia de Goiânia.
Ao ver o filme, lembrei-me o tempo todo de um outro: "Billy Eliot" de Stephen Daldry (As Horas), que também num outro tipo de pobreza, sindical e cultural, no norte da Inglaterra, enfrenta tudo para ter o direito de dançar ballet. Nas últimas cenas, sua entrada triunfal no Ballet de Londres, ao som do Lago dos Cisnes, com seu pai operário na plateia, é uma das minhas cenas marcantes. Um outro filme irlandês me veio à memória: “As Cinzas de Ângela”, de Alan Parker, sobre um escritor (Frank McCourts), que, com uma vida de violência e miséria na cinzenta Dublin, também alça voo por meio da arte. Mais perto da gente, temos também o exemplo do cantor Chico César. Nesta semana, na TV, vi sua casinha de taipa em Catolé e um pouco de sua trajetória. Lembro-me dele pequenino nos tempos da greve de fome. E viva Mama África! E toda a Arte transformadora!
No final do filme de Zezé, seu pai indaga para a extraordinária D. Helena, a sua companheira de sonhos e dificuldades, por ocasião da morte do filho menorzinho Emival, da dupla Daby & Diebersson: “Mas que diabo de sonho é esse?”. E Dona Helena, com os seus pés bem fincados no chão, responde: “Não sei, pois enquanto criava os meninos estava bem acordada”, talvez numa crítica à busca desenfreada — e por vezes irresponsável — de Seu Francisco pelo sucesso dos filhos através da música. Ah! As mulheres e suas realidades silenciosas! Mas, ao mesmo tempo que damos razão a D. Helena, ficamos a pensar que se não fosse pela troca de toda a colheita por uma sanfona e um violão, ainda hoje estariam todos os Camargos lá embaixo de um teto de zinco, furado, em vez de quente.
Saí do filme com os olhos rasos d'água, e com muito respeito por essa família de nomes esquisitos e, principalmente, pela figura de Zezé de Camargo, que, obstinado e solidário, merece todo o sucesso de um autêntico sabiá.
E me pego cantarolando: É o amor... ♩♪♫