Quando editei o “Correio das Artes” pela primeira vez, Antonio Carlos Secchin foi um dos poetas entrevistados pelo jornalista Jorge de Aquino Filho para a série “Rumos da Poesia Brasileira Hoje”. À época, ele havia lançado o livro Elementos (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1983), de poesia, ao qual acrescentaria, entre outros, Poema para 2002, Diga-se de passagem e Todos os ventos. Já como ensaísta, publicou João Cabral: a poesia do menos, Poesia e desordem, Escritos sobre poesia & alguma ficção, Memórias de um leitor de poesia, João Cabral: uma faca só lâmina e Papéis de poesia.
A propósito de Escritos sobre poesia & ficção, escrevi uma resenha, no hoje já extinto jornal “Norte”, em que observei: “(...) Secchin alia à argúcia e pertinência dos seus ensaios o virtuosismo da linguagem. E em textos como ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ e ‘Em torno da traição’, os dotes do ficcionista aos do ensaísta...”
Na verdade, Secchin é um poeta em tempo integral e dedicação exclusiva. E o é até mesmo quando escreve ensaios, o que não significa dizer que ele tangencie ou extrapole a obra objeto de sua análise para se entregar a digressões estéreis e gratuitas. Antes, de tão incisivas, as suas observações soam como aforismos, mas aforismos... poéticos, conforme corrobora nesse depoimento ao “Correio das Artes”: “A década de 1990 correspondeu a uma travessia do deserto, em termos de produção em verso. Consolava-me a lição de João Cabral: ‘Cultivar o deserto/ como um pomar às avessas’. O meu pomar poético, tentei cultivá-lo no âmago da linguagem ensaística...”
Em Desdizer (Ed. Topbooks, 2017, Rio de Janeiro), ele reúne a sua poesia até agora. Poesia que jamais sucumbiu a modismos e tampouco à “repetição mecânica e anódina do discurso da tradição”. E embora reconheça que “o poeta é uma ilha cercada de poesia alheia por todos os lados”, nem por isso a sua voz deixa de ser plenamente audível entre as muitas com as quais dialoga para a consecução do poema. A seguir, um autorretrato do poeta Secchin.
Na Antessala (poema-epígrafe de Desdizer)
Espelhei dezoito heterônimos
em ruas do Rio e Lisboa.
Todos eles, se reunidos,
não valem um só de Pessoa.
Trancafiei-me num mosteiro,
esperando de Deus um dom.
O que Ele me deu foi pastiche
da poesia de Drummond.
Ressoa na minha gaveta
um comício de versos reles.
Em coro parecem dizer:
Não somos Cecília Meireles.
O desavisado leitor
não espere muito de mim.
O máximo, que mal consigo,
é chegar a Antonio Secchin.
Depoimento de Antônio Carlos Secchin
Em antigo poema, referi-me a um “operário do precário”. Hoje percebo que, mesmo sem intenção expressa, acabei formulando nesse verso uma definição do ofício do poeta: um operário da linguagem, um experimentador de formas, cuja eficácia é posta à prova a cada verso ou estrofe que acaba de erguer. O alvo de sua palavra é instável e flutuante: abarca, a rigor, todos os meandros da experiência humana, em suas calmarias e convulsões, em sua sede inesgotável do ínfimo e do absoluto, na inestancável demanda de novos sentidos. Eis a sina do escritor: acertar não no que vê, mas no que intui.
Para duplicar apenas o que já está configurado, não seria necessária a arte. De algum modo, todo grande poema ritualiza a imemorial função de reordenar o mundo, não porque faltem nomes às coisas, mas talvez, ao contrário, porque existem nomes demais, e ainda assim não nos bastam. O poeta desbasta essa abundância falaciosa de signos prolíficos, vazios – em busca de um núcleo ou do nervo de um real sufocado sob um turbilhão de palavras: folha prolixa, folharada, diria João Cabral, que existe exatamente para impedir que percebamos o que pode haver atrás delas – um lado além do outro lado, uma quarta margem, pois até a terceira já está muito sinalizada.
Tanto a repetição mecânica e anódina do discurso da tradição, quanto o obsoleto receituário “desconstrutor” da vanguarda (diferente da necessidade, vital, da contínua reinvenção do verso) não dão conta da complexidade da poesia. Muitos manifestos de vanguarda são ferozes em seu furor censório, pois condenam à execração os que com eles não comungam. Por outro lado, não creio que, no século XXI, se possa ainda praticar o poema do século XIX. Quando minha poesia visita a tradição, o tom, com certa constância, não é de cega reverência, comporta um viés irônico. Mas constato que se encontram bem vivos vários poetas predecessores, tão vivos quanto mortos podem estar inúmeros contemporâneos. A força criadora não é fenômeno acima da História, não é um apanágio privativo de todos que hoje decretam nos jornais a invenção semanal da literatura. O conhecimento da tradição, nesse sentido, é um aparato contra a arrogância de nos supormos inaugurais, no mesmo passo em que nos conclama para um desafio: o de, herdeiros, rejeitarmos o peso dessa herança, reconhecendo que ela existe, mas que não podemos nos contentar com ela. Discordo de que o desconhecimento do processo histórico da poesia possa constituir-se em álibi ou benefício para o que quer que seja em matéria de criação. Mas isso não implica afastar-me de meu tempo. Não é possível ficar imune aos signos da globalização da cultura. O simulacro, o virtual, o desterritorializado são manifestações tão ostensivas quanto o foram os saraus e os lampiões no século XIX. Num e noutro caso, não houve impedimento para que se produzisse boa e má literatura. Frente ao nível do que hoje se produz, descarto o apocalipse, mas não engrosso o coro dos contentes.
A poesia é o lugar onde tudo pode ser dito. Mas não vale o escrito, se ele não se submeter ao imperativo da forma. Quando o texto eclode como necessidade incontida de expressão, ele nasce, como escrevi em “Biografia”, “sem mão ou mãe que o sustente”. Tal força indomável, que possui valor de verdade para o sujeito que a sofre, desconhece as boas maneiras e a conveniência. A poesia é uma hóspede invisível: só percebemos que visitou, num frêmito, o corpo do texto quando já foi embora; o vestígio de sua passagem é o poema. O poema é o rastro possível da poesia que andou por lá.
A poesia não tem um rosto. A face pressupõe identidade e reconhecimento. Todavia, como disse Ferreira Gullar em “Traduzir-se”, o poeta é (também) estranheza e solidão. Estranheza frente à linguagem cristalizada que subestima a irrupção da potência clandestina do cotidiano. Solidão, porque poesia é um baixo-falante, que capta e filtra os ruídos do mundo através da escala microscópica da sensibilidade de cada um.
O poeta é uma ilha cercada de poesia alheia por todos os lados: insulado em si, no seu compromisso radical de criar uma palavra tanto quanto possível própria, mas abastecida pelo manancial que flui dos mais diversos mares discursivos. Num poema, anotei que a escrita “é uma escuta feita voz”. Tudo alimenta o poeta: o crítico, o ficcionista, um certo azul nas manhãs de junho, o sobressalto amoroso, a procissão das formigas. Tudo são variações de espanto e de resposta em busca de linguagem, de uma formulação irrepetível que resgate da morte a fulguração da beleza.
O desafio do escritor consiste em inscrever a voz frente à tentação paralisadora e confortável da homogeneização discursiva. Em meio a seus pares, o poeta tem o dever de ser ímpar. Mas conseguir demarcar diferença ainda não resolve o problema, pois existe o risco de o artista tornar-se o repetidor da própria voz, numa prática exaurida que transforma em clausura o que antes fora libertação. O poeta deve, portanto, se precaver contra as jubilosas certezas que comece a erguer a propósito de si próprio. Ele é mais frágil do que seu texto, pois o poema sabe o que o poeta ignora. No território da crítica, fui um estudioso contumaz de João Cabral. Creio, porém, que minha poesia, é bem diversa da dele. Estudei os seus textos para aprender como ele faz, magistralmente, a literatura que eu não quero fazer. Um grande poeta não costuma deixar herdeiros, e sim imitadores. Abre mil portas, mas deixa todas trancadas quando vai embora…
Por isso tento, tento ser fiel a uma poética do desreconhecimento, em que, a haver um fio condutor no que escrevo, ele não se localize nem na influência tutelar de um guia, nem na recorrência de temas, ou tampouco na reiteração do estilo. De minha parte, entendo o criador como um solitário profissional. Dois poetas juntos já formam um complô; três, academia.
O interesse pela palavra em todos os seus desdobramentos – ficcionais, poéticos, ensaísticos – me acompanhou desde muito cedo. Mas é provável que muitos aqui nunca tenham ouvido falar de minha experiência poética, limitada a poucos volumes de ínfima circulação. Na década de 1990, atuei bastante na crítica, e em geral vigora um preconceito ou desconfiança contra o crítico que, repentinamente, se arvora “a ser poeta”. Minha primeira coletânea de versos tinha 69 páginas, a segunda, 44, a terceira, 8. Quem sabe eu não estaria caminhando para a perfeição do nada absoluto, para alívio dos leitores...? A consolidação da carreira no magistério e os frequentes convites para a elaboração de artigos e de ensaios acabaram restringindo as manifestações do poeta.
A título meramente ilustrativo, sem juízo de valor ou aprofundamento crítico, resumo a seguir essa trajetória poética, em ordem cronológica. O primeiro livro, Ária de estação, de 1973, minha “lira dos 20 anos”, corresponde a um período de descoberta e encanto diante do universo da poesia, e as múltiplas ressonâncias que esse universo me provocou. Daí conviverem tantos estilos, tantas leituras reprocessadas, do medievalismo à poesia concreta, do discurso social ao lirismo de fatura elíptica.
Dos vários caminhos sinalizados em Ária de estação, um deles se impôs quase absoluto no livro seguinte, de 1983, Elementos. É minha obra mais ambiciosa e arquitetada. Representa a opção por uma linguagem densamente metafórica, não raro hermética, com uma exacerbação metalinguística centrada na insuficiência da palavra frente a um real que sempre escapa.
Em 1988, uma plaquete com apenas oito poemas parecia sinalizar o fim de minha experiência poética. Refiro-me a Diga-se de passagem (passagem para o silêncio?), que abandonou a opulência metafórica de Elementos em prol da inserção do humor, e de uma atenção especial para com a comunicabilidade do texto.
A década de 1990 correspondeu a uma travessia do deserto, em termos de produção em verso. Consolava-me a lição de João Cabral: “Cultivar o deserto/ como um pomar às avessas”. O meu pomar poético, tentei cultivá-lo no âmago da linguagem ensaística, como se, impossibilitada do poema, do qual eu supostamente me despedira em Diga-se de passagem, a poesia procurasse outro veículo de expressão. Na medida do possível, tentei injetar no discurso crítico algo da dimensão mais criativa da linguagem poética. Alguns exemplos pinçados de ensaios escritos no decorrer da década de 1990 compuseram, em obra de 2002, a seção “Aforismos” Até que, movido por um desses imprevistos que, às vezes, fazem desmoronar a rotina morna do cotidiano, o poema retornou a mim, por volta do ano 2000, com o livro Todos os ventos, publicado em 2002, que dialoga, pretensamente em nível mais elaborado, com a multiplicidade de linguagens já estampada em Ária de estação.
Todos os ventos é dividido em quatro seções: “Artes” (não só a arte literária); “Dez sonetos de circunstância” (dez maneiras de morrer ou não morrer); “Variações para um corpo” (as artimanhas do jogo amoroso); “Primeiras pessoas” (algumas variações dos “eus” que de vez em quando encarnamos, porque, se nenhum poema retrata o autor, nenhum o desmente). Como conta “Autoria”:
Por mais que se escoem
coisas para a lata do lixo,
clips, câimbras, suores,
restos do dia prolixo,
por mais que a mesa imponha
o frio irrevogável do aço,
combatendo o que em mim contenha
a linha flexível de um abraço,
sei que um murmúrio clandestino
circula entre o rio de meus ossos:
janelas para um mar-abrigo
de marasmos e destroços.
Na linha anônima do verso,
aposto no oposto de meu sim,
apago o nome e a memória
num Antônio antônimo de mim.
Em Desdizer, de 2017, retomei e aprofundei algumas experiências de Todos os ventos. Dentre elas, nova seção de dez sonetos, mas agora voluntariamente desarticulados entre si e às vezes até internamente, sem a rubrica “de circunstância” que unificava o conjunto de 2002. Se em algumas peças pratico a dicção “elevada”, com técnica sempre que possível rigorosa, noutras procurei criar a tensão entre tal forma “nobre” e um discurso chão, o mais próximo possível da prosa. Também busquei estampar a convivência entre um registro grave e pessimista e outro, receptivo ao humor e à (auto)ironia. Na seção inicial de Desdizer, apesar da tendência à regularidade estrófica/métrica, exercitei igualmente o verso livre. Tentei, no campo da regularidade, experimentar métricas variadas: “Translado”, por exemplo, um “rap-poema”, foi minha primeira (e única) incursão na redondilha menor. Reitero, cada vez mais, meu compromisso com a clareza e a comunicabilidade do texto, esperando, não sei com que grau de sucesso, que essa diretriz não implique concessão ou desleixo frente às delicadas e complexas engrenagens da máquina do poema.
O poema “Autorretrato” talvez sintetize o que procurei expor acerca das relações entre o criador e os discursos que o cercam:
Um poeta nunca sabe
onde sua voz termina,
se é dele de fato a voz
que no seu nome se assina.
Nem sabe se a vida alheia
é seu pasto de rapina,
ou se o outro é que lhe invade,
numa voragem assassina.
Nenhum poeta conhece
esse motor que maquina
a explosão da coisa escrita
contra a crosta da rotina.
Entender inteiro o poeta
é bem malsinada sina:
quando o supomos em cena,
já vai sumindo na esquina,
entrando na contramão
do que o bom senso lhe ensina.
Por sob a zona da sombra,
navega em meio à neblina.
Sabe que nasce do escuro
a poesia que o ilumina.
(Depoimento condensado a partir do ensaio-posfácio incluído em Desdizer - Ed. Topbooks, 2017, Rio de Janeiro)