Las cosas no son como las vemos, sino como las recordamos.
Ramon del Valle-Iclán
Ramon del Valle-Iclán
O dia nem bem se enchia de sol e ela chegava à praia com o terço. Andava de um lado para o outro, quase no mesmo lugar: em frente ao único bar daquela praia de pouca gente. Muita roupa e muito negro para aquele sol tropical e sua pouca idade. Parecia rezar. Sempre. Como se aquele caminhar diário fosse uma espécie de peregrinação, como se a praia do Bessa fosse Santiago de Compostela.
Nas mesas do bar em frente ao mar por onde ela passava, até os aposentados, bêbados habituais que passavam os dias a jogar dominó, desencavar lembranças, discutir marcas de cachaça e reputações femininas, se espantavam com a reza e a indumentária num tempo de pouca fé e menos roupa ainda. Naquele território de caça lenta, mas explícita, eles sequer a levavam em conta como possível objeto do assédio, considerado normal pelos machos teimosos em continuar na ativa. Alguns até lamentavam: “tão novinha e já doidinha”. De alguma maneira todos a consideravam “meio tocada”, o que entre eles a absolvia de tentativas de conquista. E a deixavam ir e vir, indiferentes, os velhos debochados, na contagem diária do tempo para a morte certa e rápida da cirrose.
Até mesmo o antigo marinheiro reformado que não dispensava conquistas (e nem a publicidade delas, o que ainda lhe rendia admiração naquele porto perto do fim do mundo) tinha rejeitado. Ele, que era um exemplo na área de como ser bom de copo e bom de cama. Alguém que, se tivesse voltado seu olhar para a selva no lugar da marinha de guerra de sua juventude, teria uma galeria de cabeças femininas empalhadas na pequena casa de janelas azuis na beira do mar em vez das lanternas velhas, faróis e faroletes quebrados ou sinos arrancados de antigos navios.
Chefe indiscutível de lembranças e piadas naquele microcosmo, admirado e respeitado (e secretamente odiado) por sua ração extra de testosterona, certa liberalidade financeira e sua democracia na caçada diária seguindo a filosofia de “o que cair na rede é peixe”, ele se deixava admirar, olímpico e misógino, o que o tornava atraente para mulheres em geral em um espaço de poucos machos, quase nenhum realmente na ativa, derrubados pelo álcool.
Mas, até mesmo ele, o capitão, com sua fragata encalhada naquela parte ainda quase deserta da costa do Nordeste, não considerava a peregrina do Bessa digna de atenção e olhava a caça jovem com um pouco caso de barriga cheia. Doidinha...
Até que ela o surpreendeu e sentou no seu colo. Na frente de todos os vagabundos do pedaço. Explícita, molhada e exigente...
Com um mês ele, que se orgulhava de nunca ter pagado por sexo, financiava roupas, eletrodomésticos e a cota mensal do aluguel da candidata a assistente social, da Curuminha, como ele a chamava por sua genética indígena.
E a reza continuava todas as manhãs antes dos beijos de boca aberta e das línguas se roçando em público, como nos filmes. A plateia dos velhos e das muitas mulheres do marinheiro odiando e desejando o lugar usurpado.
E, como vale tudo no amor e na guerra, tambores e telefones agiram. Primos e vizinhos foram consultados. Armadilhas foram sutilmente preparadas e esqueletos tirados dos armários. O dossiê revelou a condição de quase mula-sem-cabeça da agora desejável doidinha. Tinha sido flagrada na igreja com o padre da sua cidade distante, no verdor dos seus quase quinze anos e, como é comum e desejável em tais impasses, expulsaram a menina.
Não que ela fosse vítima... Quem sabe o padre o fosse bem mais. Não teve a menor chance de resistir a Curuminha. Ou melhor, teve tantas quanto o capitão. Nenhuma. E tão apaixonado quanto o marinheiro largou a batina e a tribo. E vinha visitá-la sempre que podia, dividindo horários com o capitão e com um surfista mochileiro que morava numa tenda ao lado do bar.