De minha janela vejo apodrecer a juventude...
De aqui miro, em foco, o cair do corpo sem alma.
Sem o ouvir do Belo, o organismo fenece:
Há tiros, gritos, desesperança diante da morte em vão...
Em plena Arte, levantar-nos-íamos do torpor, do chão! ...
Há tempos não ouço e vejo um filme tão envolvente quanto este: Boychoir – cujo subtítulo de divulgação (Hear my song) aponta para o canto individual, íntimo, pessoal – é um apanhado de excelentes peças corais justificado por um argumento bem humano, e bem possível de acontecer.
Dirigido pelo franco-canadense François Girard e cativante roteiro de Ben Ripley, o filme possui uma campanha publicitária com cartazes, em várias línguas, cujas frases-comentários sobre o argumento apontam para o encontro com a voz interior, a ousadia do sonho improvável, e o extraordinário talento que requer, igualmente, extraordinária inspiração. Girard, apesar de não ter uma profunda formação musical, é bem experimentado na direção e roteirização de argumentos musicais; é dele os renomados filmes Thirty Two Short Films About Glenn Gould e The Red Violin, este último, com música de John Corigliano e performances gravadas com Joshua David Bell, ao violino, e a excelente batuta do maestro finlandês Esa-Pekka Salonen. Em Boychoir Girard segue a receita, gravando com diversos músicos, dessa vez, cantores.
O filme estreou em setembro de 2014 no Toronto International Film Festival e conta com um elenco muito bem escalado: Dustin Lee Hoffman, no papel decisivo do Mestre Anton Carvelle; Kathleen Doyle Bates, como Justine, a diretora do internato de meninos-cantores; Debra Winger no papel da diretora da escola em Odessa (a senhora Steel); Eddie Izzard, como o preparador vocal (Drake); Kevin Michael McHale, no papel do dedicado professor de percepção e ténica vocal (Wooly); Joshua Lucas Easy Dent Maurer que interpreta Gerard Owens, o pai do protagonista; Joe West, no papel do solista Devon, destaque no coro de meninos; Dante Soriano, River Alexander, Sam Poon e Grant Venable, como meninos-cantores – a maioria desses escalados para o coro são atores e cantores, como Dante Soriano. E, protagonizando, o expressivo ator Garrett Wareing, no papel de Stetson (Stet) Tate.
Há alusões dos nomes das personagens às suas funções psíquicas e éticas: Devon revela-se cruel e invejoso quando Stet começa a sua ascensão musical, seu nome liga-se sonoranamente à palavra inglesa devil (diabo), e Devon é instruído por Drake que, numa tradução direta, significa pato, uma espécie de disfarce para sua vontade de “fazer de pato” a Anton, e galgar o seu posto. Já o protagonista não gosta de seu nome por inteiro: só Stet, sem o “son” (filho), dá a dimensão da ausência paterna que só pela Música se pode reverter. A diretora da Escola Nacional de Meninos-Cantores apresenta-se como equilibradamente justa, não à toa seu nome, Justine. Anton remete, por seu cargo de direção musical e seu saber didáctico, a vários compositores: Anton Bruckner, Anton Webern, Ondřej Anton ou Antonin Dvořák. Outra alusão sutil acontece no nome da personagem Fernando: é ele quem ensina a Stet a ler música e ouvir com a devida atenção como os sons musicais se concatenam; a personagem alude ao regente de coro Fernando Malvar-Ruiz que participa, no filme, como o Maestro Molina, na cena em Yale, assim como prepara o coro, e fez arranjos vocais, por ser ele próprio dirigente no coral de meninos da vida real espelhado no filme. Também a diretora Steel; em inglês, steel significa aço: educadora de fibra que soube identificar o talento e o encaminhar às mãos de quem o possa desenvolver, sem se deixar intimidar pelo comportamento arredio e confusento de Stet. E, assim, o roteiro vai embutindo um significado simbólico como arquetípico da própria Música, e da frase latina sobre Arte: ars celare artem est.
O filme é dedicado à memória do renomado engenheiro de som vienense Hans Peter Strobl, grande amigo de Girard, de quem foi parceiro em seu último trabalho, o filme Soie, de 2007. A trilha sonora ficou por conta do compositor irlandês Brian Byrne (com co-produção do famoso engenheiro de som chileno Humberto Gatica), da qual emerge a canção-tema The Mystery Of Your Gift, posta, como de costume, durante a exibição dos créditos finais, tendo sido concebida em parceria com o cantor norte-americano Josh Groban:
A single note passes out of the ashes
A flickering ember begins
It's the courage to turn when the pages have burned
And your story now seems at an end
Seasons stay and seasons go
Sending your memories adrift
It's the beautiful longing, embrace the unknown
That's the mystery of your gift
And the echoes of your melody will always live in these walls
And the lessons that you gave to me: “before you can fly you must fall!”
It's the beautiful longing, embrace the unknown
That's the mystery of your gift
There's a voice in the shadow calling for more
There's a rhythm that beats from within
Lending your voice to the warmth of the song
There's a strength in the choir of one
Pure as the voice that sees the place where the weight of your past may now lift
It's the beautiful longing, embrace the unknown
That's the mystery of your gift
And the echoes of your melody will always live in these walls
And the lessons that you gave to me: “before you can fly you must fall!”
So sing higher & higher, a thousand new voices ring through
If you sing out of the fire, the courage you need comes from you
It's the beautiful longing, embrace the unknown
That's the mystery of your gift...
A letra traz à canção a imagem de uma construção interpretativa, o brotar de uma idéia musical como centelha que emerge das cinzas do silêncio incriado e inicia o processo criativo que, na voz, encoraja o intérprete a “virar a página” da vida para imprimir suas lembranças, antes à deriva, em misterioso cantar. Esse ardume, esse elã é o que move o cantor e comove o ouvinte; há quem diga que cantar é escarrar a alma: e este é o segredo, o maior desafio, o dom... O título da canção-tema advém da cena em que Carvelle dá o último conselho ao seu coro antes de fazer o apoteótico concerto com partes selecionadas do oratório barroco Messiah (HWV 56), composto em 1741 pelo compositor alemão Georg Friedrich Händel. Na cena, o maestro lembra aos meninos um fato que todos já sabem, mas que nem sempre têm em mente como algo consciente: o mistério do dom desse timbre agudo, leve, angelical, tem prazo de validade. O que fica como lição, além da aprendizagem artística e profissional que já nessa tenra idade se pode alcançar, é a possibilidade de continuação da carreira vocal ao mesmo tempo em que as noções de educação, disciplina e a formação humana também ficam, mesmo para quem não persiga esse talento. Ainda que sejam traçados caminhos distintos, a sensibilidade os acompanhará, assim como o rigor e apreço pelos estudos. Esse segredo iniciático é materializado na súbita perda de agudos, logo após o concerto, quando, nos dias seguintes, Stet se vê falhando vocalmente e se dá conta de que o mistério de seu dom chega ao fim de um ciclo de timbre e tessitura.
A pré-cena é simbólica: Stet está com mochila nas costas, ao fundo, olhar fugidio, e semblante paralizado numa perspectiva cortada pelo pulso da locomotiva em primeiro plano. O tempo e o destino representados como que em direções opostas, mas, cruzadas. O trem para e, em meio a nuvens, surge o título do filme apontando para o timbre ou o dom celeste do canto infantil. Mas a primeira cena é o arquétipo do estudo e da má condução dos potenciais: na aula de música, a professora tenta ensaiar o tradicional The Battle Hymn of the Republic – que, em português, as igrejas cristãs cantam, ou cantavam, como o hino “Já refulge a Glória Eterna de Jesus, O Rei dos reis” –, cuja letra foi composta por Julia Ward Howe para a música de William Steffe. É interessante observar que tal arquétipo de aula é o trivial nas instituições em nossos dias: vê-se professores sem estrutura tanto arquitetônica quanto musical, sem instrumentos afinados e adequados, com salas, muitas vezes, abarrotadas de alunos; e a falta do devido preparo, quer dos discentes, quer mesmo dos docentes. Hoje, o que a cena retrata, e as palavras de Stet em relação à falta de autoridade da professora, são o espelho fiel da formação fajuta da academia de um lado, e da generalizada desatenção menineira, de outro. No caso da música, confunde-se uma recreação musical, com o ensino e a verdadeira Educação Musical que muda destinos, que transforma viveres.
A melodia da canção-tema é, a exemplo de tantos outros filmes, aqui, também, usada como técnica de condução do discurso emocional e realce da atuação. Byrne vale-se do piano e violoncelo (tocado por Charles Bow) para ir costurando a emotividade nas relações das personagens. Debbie, a mãe de Stet, interpretada pela atriz Erica Piccininni, é fracassada na criação de seu filho, sequer percebe nele algum talento, é alcoólatra, e representou nada além de um caso fortuito para o progenitor de Stet. Fica implícito que ela talvez fosse prostituta ou apenas uma mulher fácil, carente e sem rumo. Daí, os papéis se inverterem: Stet passa a cuidar da mãe, a exigir que ela não beba, – afinal, ele só tem a ela no mundo – e, eis o motivo de sua inquietute e delinquência. Esse simulacro de malogro materno é bem comum não só em países de língua inglesa, nos quais o filme se lança mais diretamente, mas, sobretudo, em países como o Brasil, em que os índices delitivos de crianças e adolescentes estão, indissociavelmente, justificados pela incapacidade moral e educacional dos progenitores em guiar a vida de sua descendência. E, nisso, o filme fala diretamente ao mundo contemporâneo, aos sistemas educacionais, e às relações familiares.
“O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.”: após essa introdução melancólica do protagonista, suas relações problemáticas na escola, e sua mãe incapaz de o orientar, Stet, pensativo, olha da janela ainda cortinada por sua vida sem propósito, ao cair da tarde. Escurece-se a tela para pontuar uma nova perspectiva discursiva e, ao raiar de um novo dia, céu arrocheado, eis a esperança na e pela Música: surge o ônibus do National Boychoir, sob a trilha de interjeições sutis em uh!, de timbre infantil em coro acompanhado por som de teclado. O rigor, a disciplina e a pontualidade coletivos são demonstrados já como característica indispensável na formação de um coral de excelência, quando da chegada do ônibus à escola em Odessa, no Texas. De igual maneira, a elegância e reverência dos trajes que se destoam do confuso despojamento da falta de farda nos alunos da escola, plateia para o notável coro.
A primeira peça do filme é a sétima parte de A Ceremony of Carols (opus 28) do compositor britânico Benjamin Britten, composta em 1942, em meio a Segunda Grande Guerra, em seu retorno dos Estados Unidos ao Reino Unido. O texto dessa parte advém da obra poética Newe Heaven, Newe Warre, de 1595, do sacerdote inglês de fé católico apostólico romana, Saint Robert Southwell. Uma escolha bem peculiar de Britten, tanto do texto, quanto de seu sentido posto em música. E, mais ainda significativo, quando associado à cena da primeira aula em que o Hino da Batalha da (ou pela) República norte-americana é ensinado aos alunos da escola: trava-se aí o símbolo de várias batalhas postas em Música; tanto das lutas interiores, quanto de como, socialmente, se pode reconhecer os talentos. Por isso a persistência da senhora Steel em convidar o coro dirigido pelo maestro Carvelle. A meta: fazer com que Stet se envolva, definitivamente, com o seu potencial inato. É aí que Girard mostra suas capacidades associativas, e, claro, com seus objetivos bem assessorados tecnicamente. Esse trecho da obra de Britten – e outros movimentos surgirão ao decorrer da narrativa – é justamente uma batalha poética entre o Menino Deus, recém-nascido, e as forças malígnas que, de igual forma, nas personagens, também, está representada:
This little Babe so few days old,
Is come to rifle Satan’s fold;
All hell doth at his presence quake,
Though he himself for cold do shake;
For in this weak unarmèd wise
The gates of hell he will surprise.
With tears he fights and wins the field,
His naked breast stands for a shield;
His battering shot are babish cries,
His arrows looks of weeping eyes,
His martial ensigns Cold and Need,
And feeble Flesh his warrior’s steed.
His camp is pitchèd in a stall,
His bulwark but a broken wall;
The crib his trench, haystalks his stakes;
Of shepherds he his muster makes;
And thus, as sure his foe to wound,
The angels’ trumps alarum sound.
My soul, with Christ join thou in fight;
Stick to the tents that he hath pight.
Within his crib is surest ward;
This little Babe will be thy guard.
If thou wilt foil thy foes with joy;
Then flit not from this heavenly Boy!
A canção, de cunho natalino, sai num grande crescendo em direção ao encontro vocal em estentóreo final, quando se ouve o texto “menino celestial”. No original de Britten, há o acompanhamento instigante da harpa que vai, a pouco e pouco, em direção ao agudo, na representação da ascensão do combatente a satanás. Stet é apanhado pela Música somente ao fim da terceira estrofe, quando surge a palavra “som”, e as vozes se encontram. A ronda fugidia é, não só a técnica escolhida por Britten para representar o duelo de forças espirituais antagônicas de que fala o texto, mas também excelentemente escolhida por Girard nessa representação simbólica da luta entre o comportamento irrequieto e o talento latente.
Entretanto, não foi suficiente para dobrar a índole desgarrada de Stet nesse primeiro contato; o plano da senhora Steel foi temporariamente frustrado quando Drake menciona a burocrática exigência para que o possa ouvir em teste, e já é bastante para que ele fuja dessa bem armada chance. Ocorre que a vida tem suas ironias, e as vocações podem ser a única tábua de salvação para muitos. De volta à casa, Stet se vê diante da trágica notícia: com a morte de sua mãe, ainda que destrambelhada, ele não tem mais ninguém, e o órfão poderia alimentar, inda mais, os seus destemperos emocionais. Mas, no enterro, novamente, a diretora Steel dá um jeito de insistir em reconhecer o talento que o próprio Stet nem tem consciência ainda: é quando surge o senhor Owens, e ela o constrange a assumir a paternidade, nem que fosse apenas para dar ao menino uma oportunidade real de encontro com o seu dom. Saem, filho e progenitor, do norte dos Estados Unidos para Princeton, no pequeno estado de New Jersey, para que Stet fizesse teste de ingresso na renomada National Boychoir Academy.
Ben Ripley inspirou-se, provocado por Girard, a contar essa estória, baseando o roteiro na verdadeira escola-coral de meninos: a American Boychoir School – originalmente chamada de Columbus Boychoir – que foi criada em 1937, no estado de Ohio, em 1950 mudou-se para Princeton e lá permaneceu até a venda do casarão Albemarle, em 2012. Foi um dos únicos internatos musicais para meninos dos Estados Unidos, sendo o outro o Saint Thomas Choir School, na cidade de Nova York. A escola deu oportunidade para garotos de todo o mundo experimentarem o rico universo da música artística. O coro de excelência dessa escola-internato teve a chance de desenvolver, ao longo dos anos, uma carreira intensa, participando de temporadas com as mais notáveis orquestras da América do Norte, inclusive com longas tournées por todos os estados norte-americanos, ampliando assim o arcabouço cultural dos meninos-cantores. Tendo a Música como centro da formação educacional, e, para poder dar aos pupilos a máxima condição de desenvolverem seus potenciais vocais, a escola da vida real que inspirou o filme possuía um programa didáctico amplo. As turmas eram necessariamente pequenas (máximo de 12 alunos) e havia aulas regulares de Latim, com ênfase em gramática e vocabulário.
Na audição de admissão estava presente toda a cúpula da escola; o seu progenitor, muito interessado em simplesmente desová-lo lá, queria que tudo corresse bem, e Stet escolhe, justamente, o Hino de batalha da República – ratificando aí o signo de luta interna: nesse momento é a própria voz do ator, espontânea e afinada, porém distante do padrão esperado para ingressar na concorrida instituição. Nos trechos mais difíceis do filme, e, na medida em que o protagonista vai aprimorando seu canto, empresta-se a voz do estonteante músico Benjamin P. Wenzelberg que, bem escolhido por Girard, é, hoje, a personificação real do protagonista: ele é contratenor, toca piano, rege e compõe; uma espécie de furor e verve musicais. Mas, na trama fílmica, Stet só é aceito, mesmo que a contragosto de Carvelle, porque seu genitor remunera bem pelo ano letivo inicial, dando à escola um extra: e é aí que tudo começa...
Na escola, com alimentação e acomodação garantidas, Stet vê sua vida mudar drástica e radicalmente: o rigor dos horários, a busca por seu nivelamento – ele mal entende uma simples partitura –, e o lidar com os demais cantores-meninos, seus egos e temperamentos. O filme retrata alguns dos pequenos segredos no ensino de percepção musical, como a técnica mnemônica da quironomia, ao utilizar as mãos para gestos coordenados com a voz e facilitar a memorização dos intervalos. Enquanto estuda, ele se vê diante da ausência do progenitor, com a curiosidade de buscar aproximação, ou, pelo menos, tentar descobrir mais sobre a família dele. A entrada de Stet na escola abala o status relacional; Devon é o “líder”, por sua voz de destaque, mas, os demais meninos sabem que Stet não entraria fora do calendário escolar sem que tivesse um talento real. O primeiro a se aproximar dele é Fernando, em seguida Frederick (Sam Poon) e Andre (Grant Venable), além de Raffael Abrams (River Alexander) que, na verdade, é apenas colega de quarto, e mais achegado a Devon. Estabelecidas as personagens, a trama vai tomando o seu lugar em cenas de expressão e transformação moral pela Música.
A falta de instrução preliminar de Stet incomoda a Drake que já havia sido contrário ao seu ingresso, mas Justine o contém. A exemplo da escola real, a National Boychoir Academy tem vocais menores, se organiza em turmas pequenas para garantir o máximo de concentração e aproveitamento dos meninos, mas também possui o coro profissional, e é este com o qual se firma contratos com as orquestras e se organiza viagens. A cena do ensaio de Thomas Tallis é icônica: a magnífica obra Spem in alium é um moteto de proporções gigantescas, sobretudo para a sua época. Concebido a quarenta partes solistas, organizadas em oito grupos de cinco vozes cada, e preferencialmente executado em círculo para o fluir octaédrico no todo, esta obra é, a partir de cada coral, a representação das qualidades mágicas e místicas do número cinco, a que tanto os antigos tinham como clara por meio do conhecimento organizado nas Sete Artes Liberais. Essa consciência numerológica da forma e sua representação musical são bem comuns da música da Renascença. Numa manhã fria, na capela da escola em estilo neogótico, Carvelle dirige meninos, barítonos e os baixos convidados, em ensaio desse moteto que é uma catedral de som. Spem in alium foi composto por volta de 1570 e representa um ponto alto na literatura coral britânica. Stet possui a chama afetiva da Música manifestada pela curiosidade: ele não pode assistir formalmente mas, escondido, observa como se erige um templo vocal, um monumento de som e sentido litúrgico. Enquanto Carvelle vai dando as coordenadas, e a câmera vai se movendo, o som austero e expressivo de Tallis vai envolvendo o espectador, tanto como as personagens, e culmina com a explicitação da forma de crucifixo que, dentre outras tantas formas, está embutida nessa grandiosa obra. Nisto se revela a Arte: Girard soube muito bem dar a emoção à cena da transversalidade do tempo ao escolher Tallis para a sua trama fílmica. O texto latino, inspirado no livro dos Salmos, é icônico:
No chão do recinto, ao centro, há o desenho da tríade das tríades: o número 9 é representado, em preto e branco; locação muito bem escolhida por Girard para essa cena, de tal sorte que a cosmologia musical de Tallis emerge, com luz baixa, num moméntum de forte impacto emocional que desnuda os vibratos desnecessários das vozes. Stet fica impressionado e, de ouvido, quando todos se vão, ele vai à capela para cantarolar, sem se dar conta de que Carvelle, na penumbra, o vê e percebe que ele o satiriza: para um pré-adolescente acostumado com a falta de autoridade familiar, não é nada imediato a mudança de atitude e o enxergar da necessária reverência para se estudar, verdadeiramente, a Arte dos sons. Ao fundo, a trilha rememora a força artística de Tallis, como que ecoando nas mentes das personagens e, por conseguinte, nas dos espectadores.
Com esse repertório o coro principal viaja ao Japão; Stet fica com Fernando na escola, e, ao ouvirem a gravação do Pie Jesu de Devon, eles se deparam com a depurada técnica vocal e a beleza musical. Só então Stet se dá conta da imprescindível instrução musical a que ele deve, humildemente, se submeter. Quando retornam da viagem, Drake e Carvelle são compelidos por Wooly para ouvirem o progresso vocal de Stet, e se deparam com o salto que ele havia dado, justamente, ao propor cantar essa simbólica parte do opus 48 de Gabriel Fauré – que fora concebida como substituta do tradicional Dies Iræ. Mas, como com a maioria absoluta dos meninos de hoje em dia, a luta entre o comportamento cotidiano e o talento musical, em meio a uma sociedade anti-artística e anti-educacional, a inquietude de Stet se impõe como questão ainda a ser superada.
É fim de ano, um breve recesso acontece para confraternizações familiares, e fecha-se a escola. Stet, não tendo onde ficar, se esconde para não deixar que a direção descubra que seu pai não virá buscá-lo, e é nesse momento que a relação com a Música se torna exclusiva e íntima: ele passa todo o tempo estudando o repertório para o teste de ingresso no coro profissional. A peça escolhida por Carvelle é outra parte de A Ceremony of Carols: Balulalow é o quinto movimento, e o seu texto foi escrito pelos irmãos Wedderburn por volta de 1548; é uma canção de ninar para o Menino Deus, e o solo de sopranino alude à imagem da virgem ninando o seu rebento:
O my deare hert, young Jesu sweit,
Prepare thy creddil in my spreit,
And I sall rock thee to my hert,
And never mair from thee depart.
But I sall praise thee evermoir
with sangës sweit unto thy gloir;
The knees of my hert sall I bow,
And sing that richt Balulalow!
De volta às aulas regulares, chega o dia das avaliações; Stet fica nervoso, sinal de que a emoção começa a fazer parte do seu cotidiano, e, ao mesmo tempo, não consegue lidar bem ainda com os seus impulsos. Seu teste não foi como ele havia se preparado e, após a prova, ele apedreja uma vidraça, enraivecido. Mas, mal sabia ele que já o haviam aprovado quando, na quadra de basquete, ouviram-no a cantar o solo de Fauré sem que ninguém o houvesse ensinado. E é aí que vem a guinada de seus estudos: Carvelle o chama e dá uma lição como ele nunca havia ouvido; confronta-o com o seu comportamento destemperado e o provoca para obter a consciência quanto à relação íntima que deve ter com a Música. A cena é ressumada de emoção com outro trecho de Britten: That yongë child , que é a única parte desse opus inteiramente solo para voz, com acompanhamento misterioso da harpa concebido com um ostinato com as notas ré bemol e dó; e funciona como uma espécie de recitativo em meio ao clima cancioneiro dos demais números. O texto é um tanto o quanto melancólico e trata de um choro do Menino Deus, deixa para Girard levar o protagonista às lágrimas reflexivas: enquanto tenta entoar, como se fora num teste-extra proposto por seu mentor, Stet é defrontado e instigado a desistir; ele sai da capela desesperançado e, ao chegar em seu quarto, vê o engomado uniforme sobre a cama, à espera de sua estreia. Quantos alunos carecem dessas duras e necessárias palavras para serem alçados a novos patamares!...
A primeira peça que o coro executa com a nova configuração vocal é a instigante Past Life Melodies da compositora australiana Sarah Hopkins. Sarah é uma figura provocante: é requisitada palestrante, e usa como argumento composicional, o vasculhar de timbres menos comuns ou oriundos de culturas antigas para dar um toque esotérico à sua música. É dela o instrumento ‘redemoinho harmônico’, com o qual se faz coreografias de muita expressividade, a balouçar corpo e sons instrumentais em performances bastante atraentes. Em Past Life Melodies há apenas interjeições, bocca chiusa e os misteriosos overtones. Essa técnica consiste num canto polifônico – uma harmonia vocal comum em culturas mongóis ou no Tibete –, com resultado sonoro semelhante aos harmônicos resultantes no tocar de Didgeridoo ou Yiḏaki, instrumento aborígene de formato cônico, cujos graves ecoam com forte impacto emocional e ritualístico, além de seus tocadores serem impelidos a desenvolverem a chamada respiração contínua, ou circular. Essa aura envolve o filme como se a peça houvesse sido composta para a cena de tal sorte que Stet se vê, no meio do coro, tomado pela magia do momento, entoando, e tendo consciência da harmonia da qual, agora, faz parte. O título da obra é associado à tradição que o protagonista adentra, simbolicamente, quando passa a integrar o coro principal.
Daí em diante cresce a rivalidade entre Devon e Stet. Carvelle começa a dispensar confiança em seu novo pupilo, dando-lhe logo posição de destaque nas apresentações que se seguem. A primeira delas é quando o coro interpreta a icônica canção Adiemus do compositor galês Sir Karl Jenkins; é uma obra de ritmo pujante e com texto inventado a partir de um estudo fonético com intenções bem definidas. A tensão na narrativa fílmica aumenta quando do concerto na Universidade de Yale, em New Haven: o senhor Owens recebe bilhetes para a noite de gala e fica preocupado, mas, pela insistência da família vai ao concerto. Para apimentar a trama, Devon adoece e a é vez de Stet, substituindo-o, cantar a voz principal de um pequeno trecho de Ode for the Birthday of Queen Anne (HWV 74). Sentindo-se ameaçado, Devon surrupia a parte de Kind Health descends on downy wings, minutos antes de Stet abrir a pasta, ao que Carvelle, à distância o acalma e pede que ele siga o coração. Essa cena é fortalecida com outro trecho de Haendel, “Zadok the Priest” Coronation Anthem for George II (HWV 258) cuja entrada do coro, após uma introdução longa e sutilmente motórica da orquestra, é apoteótica e gloriosa.
A repercussão desse concerto resulta num convite para uma importante apresentação na célebre Riverside Cathedral, em Manhattan (NYC) com seleções de O Messias. Carvelle tem cerca de cinco semanas para aprontar os meninos e Drake o provoca a ousar compondo um contra-canto com o ré mais agudo para a voz infantil, tônica do Hallelujah – cuja forma é de um hino seguido por fuga tonal – que encerra a segunda parte desse famosíssimo oratório. Outro ponto de convergência é que, assim como na estreia feita por Händel, o convite foi para um concerto pascal. Muito embora tudo estivesse correndo bem, com o desafio lançado para o alcance pleno do ré agudo, Devon ultrapassa todos os limites e humilha a Stet publicamente, expondo o passado vergonhoso de sua mãe. É a gota d’água para que protagonista e antagonista entrem em luta corporal, e leve o conselho escolar a reunir-se pela expulsão de Stet. Carvelle, ao votar pela expulsão de seu preferido, propõe a igual punição para Devon, e ainda anuncia afastamento imediato da direção do Coro. Justine, percebendo a situação, novamente, pondera por uma decisão justa e o filme encaminha-se para o seu desfecho.
Após a estrepitosa receptividade da plateia ao fim do concerto, a Música dobra o senhor Owens de tal forma que o faz confessar à sua esposa a existência de seu filho, e, assim, hombridade e formação sólida se materializam por meio da Arte musical.
Quiçá Girard presenteie-nos com novos emocionantes filmes, cheios de Música e vida em breve! Quiçá as plateias de todo o mundo assistam a Boychoir com ouvidos atentos e se descubram os Stets perdidos, mundo afora. Quiçá descubramos o quão revolucionariamente especial é quando usamos a energia infantil para o pendor artístico; e que possamos aprender a abraçar o desconhecido para exercer o dom inexcedível, a nos suspender do torpor, do rés do chão.