Foi assim que Gilberto Amado definiu o nosso Itamaraty, segundo Antônio Carlos Villaça em carta ao escritor cearense Edmílson Caminha. Que definição notável! Digna de um grande escritor, de um mestre das palavras e das imagens, que Gilberto efetivamente foi. Suas memórias em vários volumes estão aí para comprovar. E ele fala com conhecimento de causa, pois foi diplomata durante muitos anos, nomeado por Getúlio Vargas, sem concurso.
Floresta de cochichos. E de intrigas, de vaidades grandes e pequenas, de ambições competitivas, de golpes baixos na disputa por cargos e posições, de bajulações subalternas, de uso de influências de todo tipo, muitas espúrias, para passar os colegas pra trás. Floresta de feras impiedosas, o mais forte, ou o mais ladino, devorando o mais fraco, o mais ingênuo.
Selva requintada, cheia de salamaleques convenientes e cortesias falsas. Um teatro contínuo, todos de máscara, nenhum rosto à vista, onde os punhais se cruzam e só ferem pelas costas, nunca pela frente. Reino da mentira e da dissimulação, ambas elevadas a formas de abjeta arte do engodo.
Cochichos. Sim, muitos cochichos, pois essa é a língua universal dos hipócritas e dos conspiradores. A palavra audível e clara nunca serviu aos propósitos obscuros dos que preferem as sombras ao sol do meio-dia. A proclamação expressa do pensamento sempre é evitada pelos que vivem de escondê-lo, para melhor mudá-lo ao sabor das circunstâncias e dos interesses. Dizem que a palavra foi feita para esconder o pensamento. Pois bem, em nenhum lugar isso é vivenciado com tanta intensidade como na Casa de Rio Branco, lugar de estratégias e de artimanhas, onde há pouco pão para muita fome. Fome de cargos, de poder, de prestígio e de regalias. O escritor e embaixador João Almino que o diga.
Serão todos os habitantes dessa floresta ignóbeis? Claro que não. Há gente decente e honrada, que dignifica a Casa e a carreira, mas não é suficiente, segundo Gilberto Amado, para tornar mais habitável a mata espessa e espinhenta, a mata assobiante plena de répteis perigosos. Esses decentes e honrados, que se recusam aos cochichos e aos conluios, provavelmente são as vítimas contumazes dos espertalhões e dos carreiristas, não sendo nunca – ou quase nunca - escolhidos para os melhores postos. Destino inglório esse dos sem astúcia e sem malícia, os tímidos, os de boa-fé, os desprovidos de cobiça, os indiferentes à glória, os de coração limpo, os simples, os modestos, os que jogam conforme as regras, os que trabalham com a mesma correção e gosto, seja onde for, os que se sabem efêmeros, precários, os sem soberba, porque sabem que morrerão um dia e são apenas pó, como sabia Júlio César, lembrado por seu escravo atento. Como podem sobreviver os justos no meio dos ímpios, os cordeiros no meio dos leões, fico a me perguntar, talvez ingenuamente.
Alguém dirá – e não sem razão: mas não é assim também em todo lugar, nas instituições públicas e privadas, nas empresas, nas universidades? Até no Vaticano, nos conventos e até nas sacristias? É vero. É assim mesmo em qualquer ajuntamento de pessoas, do mais humilde ao mais suntuoso. Florestas de cochichos.
Falei em empresas e em universidades. Que grandes florestas de murmúrios são elas. Cada qual de olho nos demais competidores, qualquer descuido pode ser fatal: lá se vai o cargo almejado, a promoção, a oportunidade que não se repete, a vantagem única. É preciso vigiar o tempo todo, sem descanso. A luta de todos contra todos é renhida – e contínua, intromete-se no sono e nos fins de semana, não dá trégua. E o preço existencial desse estresse, dessa ansiedade, é muito alto: envelhece-se mais cedo, morre-se de infarto facilmente – ou de coisa pior. Mas, parece-me, que dessas arenas de gladiadores ardilosos poucas se comparam ao Itamaraty, lugar por excelência das etiquetas, dos bons modos, das requintadas educações. Daí meu encanto com a definição perfeita e literária de Gilberto Amado.
Floresta de cochichos. Mesmo sendo a repartição de excelência do Brasil, onde se encontram os melhores quadros, a mais completa formação intelectual, motivo da alta reputação internacional de nossa diplomacia, pelo menos até recentemente. Ou talvez por isso mesmo, quem sabe. A embaixadora Leda Lúcia Camargo, que organizou o curioso livro Os Diplomatas e suas Histórias, Editora Francisco Alves, 2021, conta uma historiazinha ilustrativa. Certo diplomata pediu licença para trabalhar em outro lugar, porque não queria mais estar “nesse ninho de cobras”. Foi e logo retornou. Ao ser indagado do porquê, respondeu: “As cobras da Casa eu conheço”. Veja só.
Floresta de cochichos. Uma expressão dessas consagra qualquer um e nos faz pensar sobre o que nos rodeia. A cotação de Gilberto Amado comigo aumentou muito desde que a descobri.
Você, caro leitor, cara leitora, já refletiu sobre as florestas de cochichos que frequentou ou frequenta?