Desde muito, os jornais para mim nunca foram apenas do dia. Sempre encontro neles o que guardar e, quando morei em casa própria com seu altivo pé-direito, seu jardim e seu quintal, mantive lá atrás minha cafua para os jornais e outros alimentos perecíveis sem lugar na geladeira.
No apartamento não posso me dar a esse luxo, mas sobra sempre onde guardar o jornal que não pude ler de uma tirada. E no montão de dois meses avistei, ontem, um título-manchete em itálico com o nome de Epitácio Soares. O quarto onde se deu isto olha para o poente deste maio chuvoso aqui de João Pessoa, visto de um andar de boa altura aqui do Expedicionários, mas o que surge à luz já mortiça da janela é o figurão do grande Epitácio, o charuto entre os dedos, já à boca, e o brilho cintilante do olhar refletindo um mundo que só ele abarcava. O Piancó imenso ou o universo fora dele? Vivíssimo, naquele corpanzil, ele não se achava onde o comum dos homens pudesse avistá-lo.
“Grande Epitácio” – gritei chegando à porta da livraria onde lhe asseguravam cadeira cativa. Livraria com portas para o Nordeste. E como me senti pequeno ao perceber o despropósito de o fazer sair de onde estava. Em seu puro e belo ensaio, que o jornal rotula de artigo, José Mário da Silva fala como se tivesse convivido em íntima contemporaneidade com a entidade cultural e a sensibilidade do personagem. Vai fundo onde estavam os olhos de Epitácio quando o abordei. Como bom leitor, bastou ao ensaísta e escritor a leitura da crônica para conhecer o homem todo: “Na crônica de Epitácio flagramos de pronto uma inarredável consciência acerca do ato/processo da criação literária, que é encarado pelo cronista não como um mero e passageiro diletantismo do espírito, mas sim como uma irreprimível necessidade do ser, que lhe confere plenitude à existência, lenitivo para as horas em que a vida se ensombrece e o tédio quer se impor como o companheiro duradouro e indesejável.”
Não só isto (e já é muito), como, partindo da crônica de autoconfissão do velho Pita, “Da necessidade de escrever”, José Mário condescende em sensibilidades como a do cronista (ou qualquer ente criativo – acrescento eu) encontrar no exercício ou martírio de sua arte “uma utopia que se ergue contra a inevitabilidade da morte (...) um antídoto contra a inevitável passagem do tempo”.
A abstração de quem se entrega à busca da verdadeira expressão, seja inscrita em pedra, tela, papel ou nos suportes voláteis da Internet, seja qual for o veículo, dá pra isto: de repente você é acordado para a sua temporalidade. E leva um susto.
Como sempre vejo mais por fora, guardo o momento em que roubei meu velho e saudoso amigo do abstrato em que se achava. E fiz uma crônica, quando o levaram do nosso convívio, sugerindo a estátua de Epitácio, se não na porta, na calçada da Livraria Pedrosa, ela e ele dignos desse justo simbolismo. Epitácio se foi e, com ele, também a livraria famosa dos campinenses sem que impedissem de ficar por tempo indeterminado ou para sempre – quem há de saber - o fruto da abstração de onde o tirei para aquele derradeiro abraço em vida.