Há cem anos, em 1º de junho de 1922, nascia no Rio de Janeiro talvez a artista mais completa que o Brasil já teve. Refiro-me a Bibi Ferrei...

Cem anos de Bibi

Há cem anos, em 1º de junho de 1922, nascia no Rio de Janeiro talvez a artista mais completa que o Brasil já teve. Refiro-me a Bibi Ferreira, de nome Abigail Izquierdo Ferreira, ou simplesmente Bibi, primeira e única. Uma verdadeira estrela, na mais completa acepção da palavra. Uma diva, como se costuma chamar as deusas de Hollywood. Foi atriz, diretora, cantora e outras coisas mais no mundo do teatro e do espetáculo, sempre com a marca de um talento extraordinário, daqueles que beiram a genialidade, sem nenhum favor. Quem teve o privilégio de vê-la no palco sabe que é isso mesmo, sem nenhum exagero.

Eu tive – e agradeço aos céus por essa dádiva. Assistir a uma apresentação de uma artista do nível de Bibi é algo para se guardar na memória como uma relíquia.
George Clairin
Antigamente (palavrinha terrível), isso acontecia, por exemplo, com a célebre Sarah Bernhardt, atriz francesa que dominou a cena teatral europeia nas últimas décadas do século XIX. Quem a via no palco, colocava no currículo com muito orgulho. O Brasil mais recente, esse fenômeno deu-se também, talvez em escala um pouco menor, com Paulo Autran, outro gigante do teatro nacional. Na Inglaterra, isso equivalia a se assistir a uma peça com Laurence Olivier ou John Gielgud, por exemplo, monstros sagrados da arte cênica.

Se existe predestinação, pode-se dizer que Bibi estava realmente destinada ao palco, pois estreou em cena com vinte, vinte e poucos dias de nascida, veja só. Filha de atores (o pai foi o grande Procópio Ferreira), estava num teatro onde seus pais estavam atuando numa peça, quando não encontraram uma boneca que era usada em cena para substituir um bebê. Não tiveram dúvida: pegaram a pequena Abigail recém-nascida e a fizeram estrear na vida artística, vida que seria a sua pelos mais de noventa anos seguintes.

Vida de artista não é fácil – nunca foi. E a de Bibi não fugiu à regra. Primeiro, é uma vida incerta, ou seja, sem a segurança de um trabalho estável e garantido.
PMRJ
O profissional tem trabalho hoje, mas não sabe se terá amanhã. A bilheteria rende bem num dia e quase nada no outro. Sem falar nomadismo da profissão, sempre de uma cidade para outra, na estrada, como ciganos, mas sem o romantismo e a fatalidade cultural destes últimos. A tudo isso, acresça-se ainda certo preconceito, hoje já quase em extinção, ainda bem, mas que já foi muito forte no Brasil conservador do século passado, mesmo no Rio de Janeiro, então capital do país e metrópole cosmopolita, sempre na vanguarda dos costumes. Bibi sofreu na carne e na alma essa odiosa discriminação.

Aos nove anos de idade, filha de um homem famoso e importante como já era Procópio Ferreira, à época já provavelmente o maior nome no nosso teatro, Bibi teve sua matrícula recusada no famoso Colégio Sion, administrado por religiosas francesas, sob o inacreditável argumento de que “era filha de artistas”. Veja só. Que belo cristianismo era vivenciado e ensinado por aquelas freiras!. E o curioso é que na propaganda atual desse tradicional educandário carioca, situado no bairro do Cosme Velho, consta que ele pretende ser “um instrumento para os jovens adquirirem o conhecimento necessário dos valores humanos e cristãos, especial o acolhimento do ‘outro’ sem discriminações”. Veja só. Mudou o Natal ou mudei eu, perguntaria certamente o sempre irônico Machado de Assis, por sinal ex-morador do mesmo bairro do catolicíssimo colégio.

CC0
Deve ter sido um choque para os pais de Bibi e certamente para ela própria, se chegou a tomar conhecimento do fato à época. Essas coisas marcam adultos e crianças para sempre, mais estas que aqueles, claro, pois ainda não fortalecidas o bastante para aguentar o tranco. Mas o pai Procópio, ferido em seus brios, deu o troco à altura do agravo: mandou a filha Bibi estudar em Londres, o que, no fim, como acontece muito na vida das pessoas, terminou sendo ótimo para a formação da futura atriz, confirmando o velho ditado popular de que “não há mal que não traga um bem”. A menina cresceu, estudou, aprendeu a falar fluentemente várias línguas e diversos ofícios, tornando-se uma atriz completa e uma admirável one-woman show, de nível internacional.

Parece não ter sido muito feliz no amor. Teve vários casamentos Um deles, talvez o derradeiro, com o nosso Paulo Pontes, muito mais novo que ela. Ou quem sabe foi feliz assim, aos pedaços, vivendo as paixões enquanto duravam, uma de cada vez. Existem várias formas de felicidade além da monogamia e dos casamentos longevos. O importante é que ela amou e, imagino, foi amada, reciprocamente. É o que basta. É o que deve ter lhe bastado.

@bibiferreiraoficial
Assisti a um dos últimos shows de Bibi, no Rio. Ela já com mais de noventa anos, mas inteirona no palco, cantando como se tivesse vinte anos menos. Simplesmente perfeita, como sempre foi em tudo que fez. A voz poderosa e afinadíssima. O repertório escolhido para encantar o público amante da boa música. Aplausos intensos do começo ao fim do espetáculo, como se a plateia (e a própria Bibi) soubesse ou sentisse que aquele momento já constituía uma despedida, pois era muito provável que a idade avançada não permitisse que a artista fosse muito adiante. Enfim, uma emoção generalizada, no palco e fora dele. Eu, no meu canto, e um pouco constrangido (ora, por que?), segurei as lágrimas o tempo inteiro. Emoção em estado puro, para nunca mais igual, provavelmente.

Pouco tempo depois, justificou-se toda aquela emoção: a imensa Bibi nos deixou, tranquilamente, em casa, no seu apartamento no bairro do Flamengo, onde vivera muitos anos de forma discreta e elegante, como a grande dama que era. Morreu literalmente em plena glória.

A menina rejeitada pelas piedosas freiras do Sion tornou-se maior que elas, maior que todas as ex-alunas, maior que o próprio colégio, e ficou, para orgulho de uma nação inteira, do tamanho do Brasil.

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