“Muitos serão chamados, poucos serão escolhidos”. Não, não se trata da passagem bíblica, encontrada no Evangelho de Mateus (22,14), sobre a salvação dos que se aplicam ao trabalho de transformação, de modo a alcançar o reino de Deus. Na realidade, é uma citação do ateu Ernst Haeckel, sobre a luta cruel e sem piedade, que se trava na natureza, para a sobrevivência (HAECKEL apud WILLMANN, Rainer e VOSS, Julia.
The Art and Science of Ernst Haeckel, Köln: Taschen, 2020, p. 59).
Dentre os livros e os saberes multivariados que respondem pela formação cultural de Augusto dos Anjos – Filosofia, História, Mitologia, Literatura, Biologia, Física, Química, Cristianismo, Budismo e Espiritismo – é inegável a influência que a biologia evolutiva de Ernst Haeckel exerceu sobre o poeta. Não tenho como afirmar que Augusto dos Anjos tenha lido Charles Darwin, e se o fez não foi com a mesma intensidade com que leu Haeckel, textualmente citado no soneto “Agonia de um Filósofo” e no soneto de abertura de “Os Doentes”, em que se observa, neste, uma possível alusão ao prótilo (v. o soneto “Sonho de um Monista”), e naquele uma alusão ao momento da simbiose de uma célula:
No hierático areopago heterogêneo*
Das ideias, percorro, como um gênio,
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!..
“Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...
Até onde podemos saber, o poeta do Pau d'Arco acompanha a visão evolutiva do cientista alemão não apenas no sentido biológico de suas ideias, mas aplicando-a também ao crescimento do homem com relação à sua espiritualidade. Se a vida é luta e sofrimento, não é, contudo, para vivermos atolados na lamentação. O que deve nos mover são as lições que podemos aprender com a árdua existência, conforme vemos no soneto dialogal “O Mar, a Escada e o Homem”, em que o homem, apesar de sua evolução biológica, como espécie, pareça uma nau que trocou o vapor pela hélice, mas o seguir em frente, singrando “a água hórrida” do mar da vida não torna menos difícil o trabalho da “nau árdega”. Para atingir a superioridade, cabe ao homem não apenas rasgar a horizontalidade desse Mar, mas vencer “a verticalidade da Escada íngreme”, em busca da ascensão mais do espírito do que da matéria. Em suma, a pergunta que a Escada faz ao Homem – “já transpuseste os meus degraus?!” – é o que vai determinar o que ele será: Augusto (o que acrescenta), Hércules (o que enfrenta) ou simplesmente Homem (o que soluça), entregando-se ao “pandemônio aterrador do Caos”.
A vida é, pois, “árdua liça”, que submete o homem a travessias horizontais (existência material) e verticais (experiência espiritual), a que o homem poderá voltar várias vezes, a depender se transpôs ou não, um a um, os degraus da íngreme escada. Ao cumprir o ciclo apenas material, a matéria retornará ao elemento inorgânico de onde veio, para começar tudo de novo. É o que nos ensina o eu de “Os Doentes”, grandioso poema que nos revela mais a nossa doença do espírito do que a nossa doença do corpo, sendo esta uma consequência nefasta daquela (Parte III, Estrofes 57-60, versos 223-238):
A pragmática má de humanos usos
Não compreende que a Morte que não dorme
É a absorção do movimento enorme
Na dispersão dos átomos difusos.
Não me incomoda esse último abandono.
Se a carne individual hoje apodrece,
Amanhã, como Cristo, reaparece
Na universalidade do carbono!
A vida vem do éter que se condensa,
Mas o que mais no Cosmos me entusiasma
É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa.
Eu voltarei, cansado da árdua liça,
À substância inorgânica primeva,
De onde, por epigênesis, veio Eva
E a stirpe radiolar chamada Actissa!
Além de citar nominalmente Haeckel, Augusto faz várias referências a seus estudos, dentre eles a primeira dissertação do cientista, em 1862, que trata especificamente sobre as Radiolaria, como podemos ver na última estrofe acima. Ressalte-se, além disso os estudos que Haeckel fez dos cnidários. Vejamos como Richard Dawkins se refere a estes organismos (A grande história da evolução: na trilha dos nossos ancestrais; tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2009):
“Os cnidários têm dois planos corporais alternativos: pólipo e medusa. As anêmonas-do-mar e as hidras são típicos pólipos: sedentárias, boca na parte superior, e a extremidade oposta fica no chão, como uma planta.
[...] Muitos pólipos reproduzem-se brotando vegetativamente, como plantas. [...] Esses ‘hidrozoários coloniais’ ramificam-se sucessivamente, e com isso fica fácil entendermos por que eles eram confundidos com plantas. Às vezes, mais de um tipo de pólipo cresce na mesma árvore poliposa, e eles se especializam em diferentes papéis, como alimentação, defesa ou reprodução. Podemos concebê-los como uma colônia de pólipos, mas há um sentido no qual todos são parte de um indivíduo, pois a árvore é um clone: todos os pólipos têm os mesmos genes”.
[...] Muitos pólipos reproduzem-se brotando vegetativamente, como plantas. [...] Esses ‘hidrozoários coloniais’ ramificam-se sucessivamente, e com isso fica fácil entendermos por que eles eram confundidos com plantas. Às vezes, mais de um tipo de pólipo cresce na mesma árvore poliposa, e eles se especializam em diferentes papéis, como alimentação, defesa ou reprodução. Podemos concebê-los como uma colônia de pólipos, mas há um sentido no qual todos são parte de um indivíduo, pois a árvore é um clone: todos os pólipos têm os mesmos genes”.
— p. 538-9 —
Lembremos que a Sombra se define, inicialmente, como um “Polipo de recônditas reentrâncias” (“Monólogo de uma Sombra”, estrofe 1, verso 3), mas o poeta não para por aí, mostrando como tudo no universo se conecta e que é do inorgânico que surge o orgânico, ele expande a ação do pólipo inicial para a amplidão da evolução, com base na teoria da recapitulação de Haeckel, em que “a ontogênese recapitula a filogênese” (DAWKINS, p. 565). Vejamos três estrofes de “As Cismas do Destino” (Parte II, estrofes 42-44, versos 165-176):
Nessa época que os sábios não ensinam,
A pedra dura, os montes argilosos
Criariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!
Almas pigmeias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopeias carolíngias!
Era a revolta trágica dos tipos
Ontogênicos mais elementares,
Desde os foraminíferos dos mares
À grei liliputiana dos polipos.
Ao estudioso de Haeckel, a última estrofe acima não deixa qualquer dúvida de onde vem o conhecimento de Augusto, na área da biologia evolutiva – “tipos ontogênicos”, “foraminíferos dos mares”, “grei liliputiana dos polipos"...
Afirma-nos Dawkins que Haeckel “era um entusiasta da hoje ultrapassada teoria da recapitulação” e que, embora atraente, “caiu em desuso. Ou melhor, hoje é considerada uma pequena parte de algo que é verdade em certos casos, porém não em todos” (p. 566).
Mais importante do que constatar o desuso da teoria da recapitulação, nos dias atuais, é verificar que Augusto dos Anjos, com a pouca idade que tinha e com toda a adversidade geográfica e de comunicação, encontrava-se em plena consonância com o que havia de mais moderno e aceitável nos estudos da Ciências Biológicas da época, veiculado em uma língua de difícil transmissão, o alemão. Isto não o impediu de saber transformar um conhecimento científico de ponta, em uma poesia de grande qualidade, cuja concepção é a de que não basta conhecermos o processo bioquímico que a criou, é necessário aceitarmos o árduo desafio de elevar o espírito que a anima.
* O deslocamento prosódico de areópago para areopago tem o intuito de contemplar o ritmo do decassílabo, com pausas na 2ª, 6ª e 10ª – No hie/rá/ti/co a/reo/pa/go he/te/ro/gê/neo.