Amo-te como se ama certas coisas obscuras, secretamente, entre a sombra e a alma.
Pablo Neruda ▪ A dança
Pablo Neruda ▪ A dança
Tento não te pensar debatendo-se contra a gaiola em que habitas. Masmorra feita de memórias e de medo. Uma fortaleza de palitos. Prisão da qual tu não percebes as portas escancaradas.
Mas, o que sabemos nós, seres diurnos – quero me pensar assim enquanto tiro a roupa às sextas feiras meia-noite e danço nua para a lua — sobre alados de distantes olhos obscuros que se metamorfoseiam em gente de chinelo, chapéu e prosaicos óculos escuros e sentam a tomar vinho na nossa vida?
Fizemos contato em um fim de tarde de por de sol intenso e vermelhão. Certamente havia música. Prefiro pensar que tenha sido um tango. Mais perto dessa fixação que me acompanha pela vida por bandoneons. Provavelmente era apenas o ruído do vento na caatinga estéril. Desertos são propensos às alucinações.
Eu estava só, naquele bar do qual nem lembro mais do nome e estudava doutrinas vedas. História de obsessões por aquilo que desconheço. Um livro aberto à minha frente sempre foi uma espécie de exorcismo. Mantem indesejáveis respeitosamente afastados. Contigo não funcionou.
Aterrissastes na cadeira, afastando bolsa, celular e livro cuidadosamente empilhados como uma trincheira. A surpresa sempre me paralisa e eu não te afastei a ponta pés, como faço com a maioria dos mortais. Começamos, sem definição de início ou fim, o que pensamos ter sido um diálogo, mas somente monólogos se cruzaram, às vezes em proximidades perigosas. Acreditamos ter dito tanto um ao outro que não percebemos: não nos dissemos realmente nada. Apenas nos pressentimos. Solitários e desconfiados.
Distâncias foram estabelecidas. Cuidadosamente. Nenhuma intimidade deveria ser possível entre meus olhos fundos de sonhos e os teus rasos de tédio. Nem quando me afirmastes que me espreitavas nua a dançar para a lua. De concreto apenas um prosaico número de telefone, o endereço suburbano da tua gaiola e minhas lembranças do teu cansaço antigo, tua onipotência presunçosa e do teu quase desprezo por fragilidades em geral. E, por me entediar também com humanos, te quis acreditar um anjo aprisionado, caído, quem sabe corrompido, fedendo um pouco a humanidade... Mas, enfim, um anjo...
E nos perdemos depois: tu em tua prisão distante, eu nas multidões mais distantes ainda.
Outro dia qualquer, quase à mesma hora, ainda imprevisível, me telefonou. Precisava me ver. Anjos pós-modernos têm telefone e endereços eletrônicos.
Estou tão só, disseste... (Os anjos são grandes filhos da puta sedutores. Devíamos tê-los estudado melhor, cuidadosamente mesmo, a partir de sua cara safada no “Êxtase de Santa Tereza”, agradecendo a Bernini por sua iconografia explícita). E minha solidão acreditou na tua...
Vi da janela quando chegastes dirigindo a caminhonete velha, caindo aos pedaços, os pneus carecas, a pintura cheia de marcas feitas pelo tempo. Foi então que eu tive certeza de que tinhas medo de voar. E duvidei da existência de terapeuta para anjos com fobia de alturas.
Estou aqui, disseste, sem apertar sequer a campainha. Como quem tem certeza de que eu também estaria logo ali a te espreitar atrás da porta. Destravei cautelosamente a corrente após olhar repetidas vezes pelo tal do olho mágico que como única magia nos faz espionar pessoas ocasionais e anjos dissimulados.
Não te dei boa noite, apenas perguntei: — Como tiveste coragem de sair da gaiola?
— É o meu lado suicida, respondestes, rindo, enquanto depositavas sobre a mesa garrafas de vinho tinto e outras de vodca polonesa. Gostei de te ver na penumbra deserta da sala. E me interroguei uma vez mais sobre alados fóbicos de alturas quando sorristes familiarmente para a colossal imagem da gaiola que toma toda a parede do apartamento e deste as costas à janela aberta para a paisagem. Sem palavras desnecessárias.
Comprei e fotografei essa gaiola. Desde um dia depois do que te conheci. E preenchi com ela a imensa parede branca. Assim podia mais facilmente te imaginar. Pensar no teu constante jogar-se contra as varetas que facilmente poderias quebrar com os dedos.
— Bebida demais, afirmei um pouco sem convicção conhecendo muito bem a mim mesma e traçando hipóteses de ti.
Após não sei quantas garrafas, depois de todas as infindáveis teorias expostas incluindo a do meu ceticismo em relação à ausência de desejo entre humanos e anjos e a das tuas certezas de que não prevaricarias com mortais. Depois de horas a discutirmos sobre o DNA dos sonhos que sonhamos juntos nas noites de pesadelos e, mesmo, após quase construirmos tratados sobre as grades em nosso entorno, ainda bebíamos, encharcados de medo.
Só mais tarde, muito depois de todas as nossas fugas, silêncios e conjecturas heréticas sobre orgasmos entre anjos e humanos; quando apontaram as primeiras nuvens vermelhas no horizonte; naquele momento que junta céu e sol anunciando o dia alguma coisa pareceu transformar teu corpo. O meu também, pois fechei os olhos e abri o sexo. Foi então que todas as palavras, as minhas e as tuas se calaram. Ficamos mudos e nus. Desenrolastes então, timidamente, as tuas imensas asas cinza pálido, entorpecidas pelo pouco uso e me beijastes finalmente a boca.
Depois, recolhestes asas e vestistes apressadamente cuecas, calças e camisa. Calçaste as chinelas de couro marrom cuidadosamente e colocaste, mesmo, o chapéu panamá e os óculos escuros. E sem um adeus destes as costas à janela aberta para o infinito e descestes as escadas.